A morte do homem inteligente
Nestes tempos em que o jornalismo de qualidade anda em recesso, premido pela escolha estratégica da mídia hegemônica de atuar como agente da política, a perda de um talento legítimo tem um efeito devastador.
É assim que o jornalismo recebe a notícia do falecimento de Flávio de Carvalho Serpa, ocorrido na madrugada de segunda-feira (23/5).
Nesta terça-feira, os dois jornais paulistas de circulação nacional, O Estado de S. Paulo e aFolha de S. Paulo, dedicam a ele seus principais obituários.
Formado em Física pela Universidade Federal de Minas Gerais, ele desistiu de dar aulas e se tornou jornalista.
Atuou na chamada imprensa alternativa, no Rio de Janeiro e em São Paulo, ajudando a consolidar dois dos principais títulos da resistência à ditadura: os jornais Opinião e Movimento.
Posteriormente, circulou pelas revistas Veja, IstoÉ e Info Exame; foi, durante quase vinte anos, editor do caderno de Informática do Estado de S. Paulo e colaborou com a Folha de S. Paulo, as revistas Superinteressante, Galileu e Scientific American.
Leitor atento de publicações científicas, Flávio de Carvalho se transformou, ainda que involuntariamente, no mestre dos jornalistas que se aventuraram pela complicada tarefa de traduzir em linguagem comum o conhecimento especializado.
Foi, provavelmente, o principal representante no Brasil da chamada Terceira Cultura, movimento nascido na Inglaterra cujos participantes cuidam de popularizar a ciência sem desvirtuar seus princípios.
Curiosamente, ele se dedicava também a colecionar informações instigantes porém inúteis, com as quais animava as conversas com os amigos.
Nos últimos anos, era um dos principais incentivadores de encontros de um grupo de jornalistas com os quais havia cruzado em diferentes fases de sua carreira.
Em meio à diversidade de temperamentos da turma, costumava conduzir as conversas para a questão da imprensa contemporânea, com intervenções temperadas de um humor sutil e cortante.
Era implacável com relação à falta de qualidade do jornalismo e um crítico severo da linguagem chula que tem marcado a crônica nacional.
Cabeças encolhidas
Nas redes sociais, divertia os amigos com suas invenções, como quando cismava de consertar aparelhos domésticos ou descobrir como funcionam as traquitanas mecânicas ou eletrônicas.
Quando lhe coube testar uma das primeiras câmeras digitais colocadas no mercado, saiu pela redação do Estado de S. Paulo fotografando os colegas, dando início a um hábito que cultivaria pelo resto da vida.
Com o tempo, acabou produzindo um registro do cotidiano da redação, que depois foi enriquecido com as imagens das reuniões de ex-colegas.
Muitos o chamavam de "o homem mais inteligente do mundo", porque era capaz de explicar com clareza desde os mais complexos fenômenos da Física até alguns aspectos pouco discutidos da economia, como certas inconsistências matemáticas de teorias abraçadas pela imprensa.
Ele foi colaborador deste Observatório (ver aqui alguns de seus textos) e atuava em debates sobre jornalismo e ciência pela internet, mas evitava participar ao vivo de eventos de qualquer gênero.
Podia ser visto na plateia de seminários sobre tecnologia ou genética, e suas conversas no cafezinho eram sempre uma oportunidade para entender melhor o que se dizia no palco.
Manteve, enquanto pode, um blog no qual postava reportagens, traduções, resenhas, artigos ou meras curiosidades sobre ciências (ver aqui), sempre pontuadas pelo seu humor peculiar.
Por exemplo, num texto intitulado "O mistério das cabeças encolhidas", registrou que "o volume do cérebro humano caiu 10% desde a Idade da Pedra. Isso explica a grande audiência do BBB e dos programas idiotas de auditório?"
No início dos anos 1990, quando este observador assumiu a tarefa de planejar o ingresso do jornal O Estado de S. Paulo na tecnologia digital de informação e comunicação, Flávio de Carvalho Serpa ofereceu uma enorme contribuição para definir a estratégia, sugerindo que a redação fosse composta por times multitarefas, com jornalistas, tecnólogos e designerstrabalhando juntos desde a pauta.
Flávio de Carvalho Serpa morreu longe das redações, onde predomina exatamente a antítese daquilo que ele representou.