A notícia como fábula
A uma semana do segundo turno das eleições municipais, os jornais aproveitam as edições de sábado e domingo para fazer o balanço dos partidos que têm mais chances de crescer, apresentam projeções para 2014 e oscilam entre duas possíveis lideranças de oposição com vistas à disputa presidencial daqui a dois anos.
Diante da derrota iminente de José Serra em São Paulo, a julgar pelas pesquisas mais recentes, e já antevendo o desmanche do PSD, iniciativa partidária do atual prefeito paulista, Gilberto Kassab, em parceria com a Federação do Comércio, a imprensa faz suas apostas.
Há um esforço para alargar as pautas e manter no centro da cena política o ex-governador de Minas Aécio Neves, mas o desempenho do governador de Pernambuco, Eduardo Campos, já começa a alimentar especulações sobre eventual aliança entre seu partido, o PSB, e o PSDB de Neves.
No entanto, na falta de fatos concretos, a imprensa trata de construir fabulações, ou seja, elabora histórias em que fantasia e realidade se misturam para a montagem de uma possibilidade que, por enquanto, não passa de especulação.
Mas nem só de possíveis alianças vive o noticiário político.
Embora condenem, oficialmente, o baixo nível de algumas pautas da campanha eleitoral, os jornais seguem explorando os temas que trouxeram à cena política personagens do submundo dos negócios religiosos.
Com a grande exposição que obteve ao explorar a questão das campanhas contra a homofobia, o pastor da Assembleia de Deus Silas Malafaia, usado pela equipe do candidato José Serra para atacar seus adversários em 2010 e 2012, anuncia seu projeto de estabelecer em São Paulo uma filial de sua igreja, que tem sede no Rio de Janeiro.
A Folha de S. Paulo fez ainda mais por Malafaia: editou uma entrevista com o empresário da fé no programa que a TV Folha divulga através da TV Cultura de São Paulo, no domingo, dando-lhe nova oportunidade de influenciar a eleição paulistana e vender sua mensagem obscurantista.
Malafaia deitou e rolou, com seu estilo histriônico, num jogo desigual no qual o entrevistado não foi contestado, fez propaganda de sua igreja e defendeu abertamente a candidatura de José Serra.
O título que a TV Folha deu à entrevista, “questão de fé”, funcionou como um aval para o entrevistado.
Realidade e ficção
A combinação entre a entrevista de Malafaia e o restante da programação revela um esforço daFolha de São Paulo para transitar entre a informação objetiva e a tentação de influenciar a opinião do público.
Supõe-se que deixar o entrevistado falar livremente é a melhor maneira de expor seu pensamento objetivamente, mas no caso a TV Folha acabou servindo de palanque ao líder religioso.
No entanto, no debate que se seguiu, entre dois analistas da campanha, ambos disseram que problemas políticos ou morais, como o tema do “kit gay” e o julgamento no STF, não afetam a escolha do eleitorado paulistano, 80% do qual deseja mudanças na prefeitura.
Esse conjunto de narrativas pode ser lido no contexto descrito pelo jornalista e pesquisador Renato Modernell no seu livro intitulado “A notícia como fábula: realidade e ficção se confundem na mídia”.
Comparando vários exemplos de reportagens que transitam pelo terreno da imaginação e são apresentadas como representação real dos fatos narrados,
Modernell observa que, apesar de não ser possível produzir uma “escala Richter” das fabulações, pode-se constatar elementos de ficção agregados à escrita jornalística com o propósito de desviar a narrativa para determinada significação.
O pesquisador rastreia alguns artifícios utilizados pela imprensa para produzir essas fábulas travestidas de informação objetiva.
Omissão, repetição, recorte, deslocamento de contexto, falseamento de autoria, envenenamento da verdade, nariz de cera e outros mecanismos são usuais no jornalismo, sempre na busca de estabelecer uma veracidade onde só existem “as lendas da objetividade e da imparcialidade”.
Não se trata, aqui, como ressalva Renato Modernell em seu ensaio, de desqualificar a imprensa como um todo – afinal, sua eficiência e seu livre funcionamento ajudam a garantir as liberdades civis.
No entanto, não se pode esquecer que, tratando-se de um sistema, a imprensa sempre terá interesses específicos que não são sempre, necessariamente, os mesmos da maioria da sociedade.