A pauta das inguinorãças
Há um mito generalizado segundo o qual a imprensa faz a narrativa dos fatos mais relevantes de seu tempo.
Essa crença ainda sustenta o poder de influência que tem os profissionais de jornalismo a serviço das empresas de comunicação hegemônicas, e de certa forma explica o fato de a mídia tradicional ainda controlar quase toda a agenda pública.
Por esse motivo, análises genéricas, platitudes e mesmo contrafações grosseiras acabam sendo aceitas como verdadeiras por grande parte da população.
Esse efeito é mais perceptível nos grandes aglomerados urbanos, onde uma ideia, por mais estúpida que seja, pode se espalhar e se afirmar como sensata e verdadeira com muita rapidez.
No contexto de insegurança e ansiedade em que vivem as populações das grandes cidades, é natural que a visão de mundo seja mais suscetível às pregações negativistas do que às mensagens otimistas.
O ambiente opressivo que marca o cotidiano dificulta a percepção de sinais de melhoria no médio e longo prazos e aumenta o peso do mal-estar.
Trata-se de dois aspectos do campo comunicacional que raramente são observados em suas interações: a propensão das pessoas a supervalorizar as dificuldades do dia a dia e a ação manipuladora da mídia diante de fatos que aumentam a ansiedade e a sensação de insegurança.
Esses dois elementos, somados e interconectados, explicam em boa parte as reações massivas a determinadas ideias e interpretações superficiais, ou mesmo a manipulações da realidade.
Veja-se, por exemplo, como a defesa da pena de morte predominou na sociedade brasileira durante décadas, alimentada pelo discurso de boa parte da mídia sobre a impossibilidade de recuperação dos delinquentes.
A narrativa típica do jornalismo omite dados estatísticos e elementos que permitiriam entender a complexa questão da reincidência e, portanto, impede que a população imagine outras soluções que não a da execução sumária dos suspeitos.
O resultado é a popularidade de frases emblemáticas como "a solução é a Rota nas ruas", que celebrizou o notório deputado Paulo Maluf.
Analfabetismo midiático
A Rota – sigla das Rondas Integradas Tobias de Aguiar, tropa de impacto da Polícia Militar de São Paulo – sempre foi símbolo da truculência policial.
São incontáveis as vítimas que seus integrantes produziram na periferia da região metropolitana, entre as quais uma grande porcentagem de jovens sem relação com o crime, executados simplesmente por serem negros ou pardos em circunstância que o arbítrio do policial considerou suspeita.
Com a mesma superficialidade é tratada a questão da maioridade penal, que passou transversalmente pela campanha eleitoral deste ano e, como foi citado neste Observatório, desapareceu subitamente do noticiário.
Por que?
Porque aconteceu um assalto na Universidade de São Paulo, do qual participaram algumas crianças, uma delas aparentando nove anos de idade.
Em vez de aprofundar o debate, a imprensa escondeu o assunto, evitando que se questionasse a ideia equivocada, que parece convencer grande número de brasileiros, segundo a qual basta prender adolescentes que os índices de violência vão se reduzir.
A mesma coisa se pode dizer sobre a criminalização do aborto: muitos brasileiros acham que autorizar o procedimento em clínicas regulares, em casos específicos, é o mesmo que apoiar ou estimular o aborto.
Da mesma forma, a superficialidade com que se trata o problema das drogas mantem na agenda uma ideia difusa segundo a qual basta legalizar o comércio de maconha que imediatamente se irá desmanchar o poder das quadrilhas de traficantes.
A lista das platitudes não tem fim e mostra de que maneira a mídia funciona como um entrave ao crescimento da consciência social dos indivíduos.
Embora possa parecer leviandade, pode-se demonstrar que o leitor típico de jornais tem todas as características do analfabeto em mídia, ou seja, quanto mais fiel é o leitor, menos capaz ele se torna de ler criticamente o noticiário.
A media illiteracy, expressão em inglês utilizada para definir a incapacidade de interpretar a mensagem midiatizada, é uma característica das classes médias urbanas.
É nesse terreno de meias-verdades e preconceitos que se concentra o poder da mídia.
Como diria o poeta Manoel de Barros, é preciso encarar as inguinorãças e desinventar a imprensa.