As vítimas sem nome
Os jornais do final de semana noticiam que, em um dia de bombardeios, as forças armadas de Israel mataram doze palestinos, em um cenário que anunciava nova crise militar no Oriente Médio.
Esse é o número médio de mortes que ocorrem em São Paulo, no conflito não declarado entre a Polícia Militar, o grupo criminoso conhecido como Primeiro Comando da Capital e outros protagonistas não identificados oficialmente.
Ao contrário do conflito entre israelenses e palestinos, porém, o noticiário por aqui peca pela imprecisão: passados seis meses do episódio que a imprensa considera o início dos confrontos entre policiais e o crime organizado, ainda não se sabe exatamente do que se trata.
Pior: os jornais omitem os números e nomes de uma parte dos mortos, aqueles que são apanhados no fogo cruzado.
Em sua edição que circula com data desta segunda-feira, 19/11, a revista Época tenta fazer um diagnóstico da violência em território paulista e homenageia os policiais mortos nessa guerra bizarra.
Mas, apesar do esforço para explicar a origem do conflito, falta um pedaço importante nessa história: os outros mortos.
Essa é uma falha que toda a imprensa brasileira vem cometendo desde o mês de maio, quando uma operação desastrada e mal explicada da Polícia Militar deixou seis mortos num bairro da zona leste.
Segundo os jornais, esse episódio deu início à sucessão de ataques a policiais e outros agentes de segurança, que provocam atos de vingança contra suspeitos, e assim por diante, alimentando-se o círculo da violência que parece sem controle.
No entanto, apesar das evidências de que as autoridades estaduais não sabem como colocar um paradeiro no derramamento de sangue, a imprensa tem sido tímida ao cobrar uma explicação oficial aceitável e um mínimo de informações sobre o que realmente está acontecendo.
O artigo publicado pela Folha de S. Paulo nesta segunda-feira, sob o título “Uma resposta para Willian”, é um caso raro: nele, a autora, Denise Chiarato, exige o esclarecimento das circunstâncias em que foi morto o menino Willian de Souza, de 13 anos, que estava entre as quatro vítimas de uma das chacinas que se tornaram rotina na periferia da capital paulista.
Os outros mortos
Willian morreu no dia 6 de novembro, e até a presente data nenhuma autoridade deu qualquer explicação sobre as circunstâncias de seu assassinato.
Assim tem sido com todas as outras vítimas civis que não eram policiais ou criminosos fichados: silêncio absoluto e desrespeito com a opinião pública por parte do governo do estado e, do lado da imprensa, uma omissão incompreensível.
O silêncio autoriza a suspeitar que muitas dessas mortes sejam produzidas por esquadrões de assassinos pertencentes à própria polícia.
Essa é a parte que falta à reportagem publicada pela Época neste final de semana. O texto começa com a ambição de tentar explicar como as autoridades paulistas vieram a perder o controle da violência, desde o momento em que o governador Geraldo Alckmin decidiu desmontar o sistema de inteligência da polícia civil criado por seu antecessor, o falecido governador Mario Covas.
Ao passar o comando do combate ao crime organizado à Polícia Militar, segundo a revista, o governador abriu as portas do inferno, porque a PM não tem um setor de inteligência tão eficaz quando a Polícia Civil, e seus agentes são acusados de atuar com truculência, promovendo ações violentas e contribuindo para aumentar o clima de insegurança.
A reportagem de Época se completa com os perfis de alguns dos 94 policiais assassinados na sucessão de ocorrências que se agravam desde maio.
Ao dar um rosto e uma história a alguns dos policiais mortos, a revista presta homenagem a apenas uma parte das vítimas, tomando partido e fazendo o jogo oficial, que esconde as mortes de inocentes como o menino Willian de Souza.
É bastante provável que, com o isolamento de alguns dos líderes do crime organizado, transferidos para presídios federais fora de São Paulo, diminuam as ocorrências e a situação volte à normalidade.
Ainda assim, a imprensa fica devendo uma parte dessa história.
Fica faltando contar quem são os outros mortos e denunciar seus assassinos.