Cinzas da notícia
Nesta quarta-feira (13/02), dita de cinzas, o conteúdo dos jornais parece um “cozidão” de edições anteriores.
Sem novidades interessantes para animar os leitores cansados de folia, os editores abrem espaço para especulações sobre a sucessão do papa Bento 16 e gastam o estoque de fotografias de mulheres seminuas para preencher a cota de espaço disponível com o fim do carnaval.
A única novidade nesse pacote é o fato de a Santa Sé ter admitido que o cardeal Joseph Aloisius Ratzinger sofria de problemas cardíacos, tendo implantado um marca-passo há dez anos, ainda antes de ser ungido chefe supremo da igreja católica.
Os jornais admitem a surpresa com a notícia, o que revela como o sistema de poder do Vaticano continua fechado em si mesmo, impermeável ao assédio da imprensa e indiferente à curiosidade dos leigos e de seus próprios sacerdotes.
O pouco que vaza dos conclaves e da rotina na cúpula da Igreja é resultado de relações desenvolvidas por anos de convivência entre alguns bispos e jornalistas veteranos que atuam em Roma.
E o que eles conseguem apurar reflete apenas as opiniões esparsas formadas por suas fontes.
O sistema de poder da Igreja é um exemplo perfeito de “programa”, sistema de comunicação fechado em círculos de exclusão, que não faz a menor concessão à chamada opinião pública.
Segundo os relatos dos jornais, os mais próximos, como a imprensa italiana e os próprios cidadãos de Roma, parecem reagir com maior indiferença à notícia da renúncia do papa do que aqueles que vivem longe da Santa Sé, como os católicos brasileiros ou mexicanos.
É como se soubessem que as questões centrais da Igreja sempre se resolvem intramuros.
Portanto, tudo que sai nos jornais é apenas especulação.
Dizer, por exemplo, que “disputa de poder foi um dos motivos da saída de Bento 16”, como anuncia a manchete do Estado de S. Paulo, não chega a ser uma novidade.
Afirmar que “Bento 16 não vai interferir em sucessão”, como faz a Folha de S. Paulo, é mais do mesmo e quase nada.
O que fica bem claro no discurso oficial do Vaticano é que o cardeal Ratzinger, após deixar o cargo de papa, não terá ação efetiva nas negociações para a escolha do sucessor.
No entanto, ninguém pode garantir o que vai pelas cabeças coroadas que vão escolher o futuro papa.
Abandonado pelo poder
O Vaticano costuma se pronunciar somente através de notas oficiais, lidas por seu porta-voz, sem direito a perguntas dos jornalistas.
Portanto, toda informação oficial chega ao público devidamente expurgada de expressões que possam denunciar as divisões internas e eventuais intrigas.
Ainda assim, a soma das opiniões produzidas por religiosos e analistas que acompanham a vida na Santa Sé há muitos anos, permite aos leitores de jornais adivinhar que a renúncia de Bento 16, além de se constituir em evento histórico inédito nos tempos modernos, traz indícios de grave crise de autoridade no Vaticano.
A insistência de especialistas em observar que o papa renunciante não conseguiu superar a barreira que protege os sacerdotes acusados de pedofilia, de certa forma altera a versão corrente até então, de que Bento 16 era omisso diante do escândalo.
Confidências que chegam aos jornais indicam que o papa não conseguiu impor sua decisão de investigar e punir os bispos que acobertaram os casos de pedofilia.
Com repercussão quase nula na imprensa nacional, uma entrevista publicada no site National Catholic Reporter, com sede nos Estados Unidos (ver http://ncronline.org) informava, no dia 8 deste mês, que o número de vítimas de padres pedófilos pode passar de 100 mil somente entre os fieis americanos.
O assunto teria sido tratado em reunião de cúpula no Vaticano, poucos dias antes do anúncio da renúncia de Bento 16.
Entre as informações citadas nesse encontro, segundo a publicação, estariam o valor devido pela Igreja em indenizações para essas vítimas: já teriam sido pagos mais de US$ 2 bilhões, a maioria em acertos feitos discretamente com as famílias, mas o total devido é considerado incalculável.
Além desse tema, que os bispos se negam a tratar publicamente, chamam atenção, no meio das reportagens desta quarta-feira, citações sobre um novo escândalo financeiro envolvendo o Banco do Vaticano e a hipótese de que o antigo mordomo do papa, condenado por vazar informações sigilosas para a imprensa, não teria agido sozinho, mas foi um agente de inimigos do pontífice no Vaticano.
A soma desses indícios autoriza a afirmar que Bento 16 não renunciou: foi abandonado pelo poder.