Engolindo a isca
Mudou sutilmente a cobertura dos três principais jornais de circulação nacional sobre a crise na segurança pública de São Paulo: depois de comprar sem reservas as bravatas da organização criminosa conhecida como Primeiro Comando da Capital (PCC), a imprensa começa a se dar conta de que estava prestando um serviço à quadrilha ao divulgar, sem contrapontos, algumas informações que os bandidos haviam "plantado" no relatório do Ministério Público que serviu de base para as primeiras reportagens.
Os criminosos disseram o que queriam que fosse escutado, os jornais engoliram a isca.
A equação é muito simples: com base no levantamento iniciado regularmente em 2010, o Ministério Público anunciou que iria pedir o confinamento dos líderes da organização que estão cumprindo pena. Com isso, eles perderiam o contato com seus comandados, o que provavelmente afetaria seus negócios, principalmente o tráfico de drogas.
Sabendo que suas conversações telefônicas estavam sendo gravadas, os líderes do PCC fizeram chegar às autoridades suas supostas intenções de assassinar o governador e, posteriormente, também de infiltrar criminosos em manifestações de protesto.
Nesta terça-feira, os jornais "informam" que o PCC ameaça promover ataques durante a Copa do Mundo e as eleições de 2014.
Se o leitor estiver atento ao noticiário fragmentado dos últimos dias, vai se dar conta de que essa agenda coincide com os planos dos grupos que têm saído às ruas sob escolta dos Black Blocs, promovendo depredações em nome de uma pauta de reivindicações tão ampla quanto imprecisa.
Ao dar destaque a tais bravatas, deixando no ar o temor de que o Estado é impotente contra a desordem, a imprensa fortalece tanto o PCC quanto os insensatos que pensam poder paralisar indefinidamente a vida nas cidades.
Com isso, tanto as autoridades da Segurança Pública quanto os jornais colaboram para demonizar as manifestações originais, aquelas de junho, que traziam a público reivindicações essenciais para a qualidade de vida de milhões de brasileiros, como o direito à mobilidade urbana, melhorias na saúde e na educação, controle da corrupção e reforma no sistema político-partidário.
Ao empacotar todos os protestos no contexto da criminalidade, essa ação conjunta da imprensa incentiva os agentes públicos mais propensos ao uso da violência a aumentar sua sanha contra qualquer grupo que se mova nas ruas.
Conversas plantadas
O primeiro jornal a reproduzir a seleção de informações do Ministério Público sobre as conversas dos líderes do PCC, na série iniciada sexta-feira (11/10), foi o Estado de S. Paulo, que se mantém na atitude pouco jornalística de dar encaminhamento às informações oficiais sem exercer o dever da dúvida.
A Folha de S. Paulo e o Globo entraram na cobertura, mas nesta terça (15/10), a Folha dá um novo tom ao assunto, destacando contradições nas avaliações do governo paulista sobre o poderio da organização criminosa e lembrando que, em 2011, o então secretário da Segurança havia afirmado que "o PCC são no máximo 30 presos influentes que exercem algum poder de decisão e estão cumprindo pena em um só presídio".
Segundo a Folha, o governo paulista foi questionado até mesmo por entidades internacionais por nunca haver produzido um relatório abrangente sobre a onda de ataques promovida em 2006 pela organização criminosa.
É interessante observar que essa postura da Folha quebra o discurso uniforme da mídia tradicional sobre o problema do crime organizado em São Paulo.
Ao mesmo tempo, convém chamar atenção para o fato de que os distúrbios provocados por transportadores autônomos que controlam o serviço de micro-ônibus no Rio, nos últimos dias, tem por trás a mão das milícias chefiadas por policiais corruptos.
Portanto, já é tempo de a imprensa sair das caixinhas onde costuma colocar os grandes problemas nacionais e questionar se a questão da corrupção de autoridades, que fertiliza o poder dos criminosos, não estaria a merecer uma ação conjunta dos Estados com o governo federal, envolvendo todas as instituições da República.
O Brasil está precisando de uma "Operação Mãos Limpas", como foi feito na Itália a partir dos anos 1980.
O assassinato de um jovem promotor em Pernambuco, ocorrido na manhã desta segunda-feira (14/10), vem se somar ao quadro de insegurança que envolve os agentes públicos que tratam de fazer seu trabalho.
Os líderes do PCC falaram o que queriam que fosse gravado.
Ao dar publicidade ao conteúdo dessas conversas sem complementar as informações oficiais com suas próprias investigações e reflexões, parte da imprensa corre o risco de servir ao mesmo tempo ao crime organizado e às autoridades que tentam dissimular sua incapacidade de lidar com o problema.
O jornalismo que não questiona suas fontes pode acabar se desmoralizando.