Explicações pela metade
Os jornais se dedicam a analisar os motivos pelos quais, com tantas notícias negativas em relação às instituições públicas, os brasileiros não se dispõem a sair às ruas e engrossar os protestos contra a corrupção.
Oficialmente, em editoriais, ou extraoficialmente, pela voz de alguns de seus colunistas mais fiéis, o núcleo de opinião da imprensa admite, de maneira genérica, que a percepção de bem-estar e – como afirma o editorial do Estado de S.Paulo nesta sexta-feira, dia 14 – “a melhora sem precedentes no padrão de vida de milhões de brasileiros e a sensação geral de otimismo que daí resulta” inibem o desejo de protestar.
Basicamente, é isso mesmo. Mas também é muito mais do que isso.
Por trás do aparente imobilismo – medido, evidentemente, pela expectativa da imprensa – repousa, claro, o paradoxo entre a ética pública, aquela que o cidadão exibe como condição para sua boa reputação, e a ética privada, aquela com a qual ele administra a relação custo-benefício dos fatos cotidianos.
Mas esse paradoxo nunca impediu manifestações de protesto em outras épocas.
Manifestações contra a corrupção são, no mínimo, saudáveis, como lembra uma articulista da Folha de S.Paulo, e por pequena que seja a participação, sempre funcionam como um aviso aos detentores do poder.
Mas a aparente desproporção entre a indignação manifestada nas redes sociais e a disposição de sair às ruas tem outras explicações possíveis.
Uma delas é que, nas redes sociais, o cidadão expressa claramente, conforme seus recursos intelectuais, aquilo que pensa sobre o assunto.
No meio de uma passeata, a individualidade se dilui e as sutilezas de suas convicções se perdem na massa geral do protesto.
Aí é que entra a percepção de bem-estar: se a corrupção sempre existiu, por que razão, agora que a vida é bela em outros aspectos, o indivíduo iria sair se queixando por aí?
Nem por isso, porém, a baixa adesão a protestos de rua signifca conformismo com a decadência das instituições republicanas.
Por outro lado, não se pode afirmar que o brasileiro seja ou se considere menos honesto do que outros cidadãos – o noticiário internacional está pleno de escândalos, da Itália ao Japão, passando pela China, a Rússia, a Europa e a América do Norte.
Fosse chefe de governo no Brasil, Silvio Berlusconi há muito teria sido expelido de sua cadeira.
Há mais, portanto, a se considerar do que o que se lê nos jornais por estes dias.
A utopia está nas ruas
A percepção de bem-estar joga um papel tão importante que o principal partido de oposição dedicou-se, segundo os jornais desta sexta-feira, a levantar o fantasma da inflação em sua propaganda na televisão.
Se os brasileiros começarem a temer pela volta da inflação, quem sabe muitos deles se animem a sair às ruas, e então se pode capitalizar os descontentamentos na bacia de todas as intenções.
Mas ainda restam questões a serem acrescentadas a essas análises.
Uma delas, que nunca é abordada pela imprensa, se refere ao significado do fenômeno da mobilidade social, que o editorial do Estadão denomina de maneira surpreendentemente enfática como “a melhora sem precedentes no padrão de vida de milhões de brasileiros”.
A mobilidade social é a realização de uma utopia há muito perseguida pela fração mais progressista da sociedade brasileira, e é nesse ponto que repousam as principais deficiências das análises da imprensa sobre o significado dos protestos.
Tanto em relação à corrupção e impunidade percebidas pelos brasileiros como em relação ao que estimula cidadãos americanos ao movimento conhecido como “Ocupe Wall Street”, estende-se como pano de fundo a questão da utopia.
Esse é o ponto central que deveria estar em debate: as utopias ainda fazem sentido? O que distingue a utopia da ilusão?
Wall Street representa o mundo pragmático do capital em seu caráter mais obscuro, para o qual pouco importam os interesses gerais da sociedade.
Os americanos que acampam no Parque Zuccotti, no coração do distrito financeiro de Nova York, não estão simplesmente protestando contra os crimes financeiros que abalaram a economia do país – eles estão tentando resgatar a utopia da “terra das liberdades e oportunidades para todos” – que se perdeu na última década.
Tem um significado especial o fato de que o Memorial 11 de Setembro, no local onde antes existiram as torres do World Trade Center, fica a duas quadras dali.
Talvez falte aos brasileiros indignados com a corrupção uma utopia a defender, a idéia clara de um modelo de país que desejariam construir.
Mas utopias não cabem nos jonais.
Utopia é uma palavra que a imprensa tradicional teme e despreza.