Fragmentos de realidade
O julgamento do ex-goleiro Bruno Fernandes de Souza e seus amigos, acusados de matar a jovem Eliza Samudio, se arrasta em Minas Gerais, sob o efeito de manobras e trocas de advogados.
O bicheiro Carlos Cachoeira, principal suspeito de chefiar uma rede de corrupção que envolve governadores, empresários, parlamentares e outras autoridades em operações que afetam grandes projetos de infraestrutura, é condenado em primeira instância e colocado em liberdade.
No Supremo Tribunal Federal, prossegue a definição das penas para deputados condenados na Ação Penal 470, sob risco de conflito com o Congresso por conta das atribuições sobre a preservação dos mandatos.
Em torno dessas questões, uma declaração do ministro da Secretaria
Geral da Presidência da República, comparando a violência em São Paulo ao conflito na Palestina, empurra novamente o problema da segurança pública para o campo da política.
Muito se tem dito sobre a inadequação do sistema da imprensa diária para cobrir com alguma coerência o noticiário fragmentado da vida cotidiana, e as edições desta quarta-feira, dia 21, oferecem uma oportunidade interessante para a análise desse desafio.
Todos os fatos acima têm alguma conexão entre si, e deveriam oferecer ao leitor de jornais a possibilidade de entender como funciona o sistema da Justiça, o que contribuiria para reforçar a confiança da sociedade no sistema legal.
Mas o efeito pode ser exatamente o contrário.
Muitos cidadãos têm certamente a convicção de que o ex-goleiro do Flamengo é realmente culpado de mandar matar sua ex-amante, com quem teve um filho, e desaparecer com seu corpo.
Poucos têm alguma dúvida sobre a veracidade das acusações que pesam sobre o bicheiro Cachoeira.
O caso a que se refere a Ação Penal 470, conhecido como o escândalo do “mensalão”, também forma convicções muito sólidas, reforçadas pela ação da imprensa e consolidadas pelas sentenças proferidas no STF.
No entanto, juntando-se as três histórias tem-se uma imagem imprecisa do sistema judiciário: a conclusão mais apressada induz a crer que a Justiça só é eficiente na última instância.
Bom jornalismo custa caro
Muitos teóricos afirmam que o negócio da mediação de notícias está em declínio, por conta do avanço das tecnologias de informação e comunicação, que permitem o acesso quase instantâneo a imagens, documentos e declarações em praticamente todo o mundo, sem necessidade do trabalho de filtragem e seleção feito pela imprensa.
Por outro lado, jornais, revistas e outros meios ainda são vistos como avalistas da veracidade dos fatos, e sua influência ainda determina em grande parte a agenda dos assuntos que serão tema da sociedade.
Para isso, no entanto, a imprensa, como instituição, deveria ser capaz de oferecer um produto diferente daquele que o cidadão pode encontrar nas redes digitais de informação.
Na verdade, hoje em dia as pessoas que têm acesso a essas redes nem precisam ir em busca das notícias, porque elas lhes são oferecidas quase em tempo real por meio de aplicativos inteligentes que definem o perfil de cada usuário, selecionando individualmente pacotes de informações de acordo com seus hábitos e preferencias.
Segundo alguns especialistas, a melhor alternativa para as empresas tradicionais de mídia seria cuidar da contextualização dos fatos, organizando-os por campos de conhecimento ou de interesse, para facilitar ao leitor o entendimento da realidade.
No entanto, um produto jornalístico com essas características teria mais chance de ser valorizado quanto mais diversidade de interpretações fosse capaz de oferecer ao seu público.
E, como se sabe, o produto jornalístico de qualidade custa muito caro.
No caso dos três assuntos tratados pela imprensa nesta data, por exemplo, seria necessário um esforço adicional de coleta, seleção e edição de novos elementos de informação adequados para dar ao leitor as dimensões de cada acontecimento e a relação entre eles.
Sem isso, o leitor comum pode formar uma opinião equivocada sobre os procedimentos do tribunal de júri que trata do caso Eliza Samudio, pode tirar conclusões precipitadas sobre a libertação do bicheiro Carlos Cachoeira e entender que a eficiência do Supremo Tribunal Federal não condiz com a realidade da aplicação da Justiça no Brasil.
Como pano de fundo, ao tomar conhecimento da declaração de um ministro sobre a violência num estado governado pela oposição, o leitor pode acabar concluindo que não há Justiça, apenas política.