Justiça e impunidade
A absolvição da advogada Carla Cepollina, acusada de haver assassinado o coronel e ex-deputado Ubiratan Guimarães, em setembro de 2006, conta uma história exemplar de como não funciona a Justiça no Brasil.
A loira alta, magra, de olhar firme e voz segura, soube como ninguém interpretar a alma nacional e, ao lado da mãe, também advogada, mostrou como se pode explorar a verdadeira natureza do sistema judiciário cuja redenção vem sendo alardeada pela imprensa ao longo do julgamento da Ação Penal 470, aquela do caso conhecido como “mensalão”.
Os autos diziam que Cepollina matou friamente o ex-amante enquanto ele dormia, alcoolizado.
Mas sua defesa conseguiu explorar a carência de provas, seu desempenho diante do júri tornou consistentes as dúvidas e, principalmente, pesou na decisão a figura emblemática de sua suposta vítima.
O coronel Ubiratan Guimarães, apontado como responsável pelo massacre de 111 detentos no pavilhão 9 do antigo complexo penitenciário do Carandiru, em São Paulo, ocorrido em 2 de outubro de 1992, foi transformado em celebridade pelos programas policialescos do rádio e da televisão, entrou para a política e apenas cinco anos depois já assumia pela primeira vez uma cadeira de deputado estadual.
Seu julgamento se arrastou por quase uma década e ele foi condenado, em 2001, a 632 anos de prisão.
Mas, como havia sido eleito, seu recurso foi julgado pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo, a sentença foi suspensa e uma sucessão de manobras o mantinha longe da cadeia.
No entanto, ele ficou conhecido como o maior assassino da história do Brasil, ou o homem responsabilizado pelo maior número de mortes, e nunca se esquivou desse estigma.
Ao contrário: ele explorava a história do massacre – seu número de candidato a deputado sempre foi 14111. Tornou-se uma espécie de herói daquela parcela da população que pede a pena de morte, apoia as ações violentas da polícia e entende que o crime cometido no Carandiru durante o governo de Luiz Antônio Fleury Filho foi uma forma de justiça.
A vingança rosna
Os jornais passam ao largo dessa interpretação, mas o caso que se encerra com a absolvição de Carla Cepollina tem uma relação direta com a onda de violência que transtorna os paulistanos desde o mês de junho.
Ubiratan Guimarães era um ícone da tropa conhecida como Rota – Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar – cujas operações foram eleitas pelo atual governo do estado como símbolo da intolerância com o crime.
Mas aquilo que o governo paulista chama de “tolerância zero” é apenas a licença para matar, e sua consequência mais visível é a resposta dos criminosos, que, organizadamente, buscam vingança eliminando agentes públicos.
O resultado mais amplo e imediato é a insegurança geral, o medo que atinge a população como um todo e deixa os policiais inseguros e, portanto, menos capazes de tomar decisões sob pressão.
Há outras consequências, que o governador procura verbalizar em suas manifestações públicas e privadas: a possibilidade de que a conta pelo surto de violência que assombra os paulistanos venha a ser cobrada nas eleições de 2014.
Assim, a sombra projetada pelo coronel Ubiratan Guimarães ainda deverá se estender por mais algum tempo, a questionar a estratégia de segurança pública que produz insegurança.
A absolvição de Carla Cepollina seria uma oportunidade para a imprensa ampliar as reflexões sobre essa questão. Com certeza, se as redações ainda preservam um pouco de racionalidade, os jornais não compactuam com as teses representadas pelos defensores do massacre do Carandiru.
Guimarães e seus adeptos representam a barbárie.
A imprensa, supostamente, é um dos baluartes do processo civilizatório.
Cabe a ela manter acesa a chama de princípios que sustentam a democracia e as instituições republicanas.
Se, como dizem os jornais, os jurados absolveram Cepollina porque consideraram que ela, de alguma forma, “justiçou” o homem que foi responsabilizado pelo massacre do Carandiru, o caso não está encerrado.
Do outro lado, o da família e dos amigos de Ubiratan Guimarães, rosna o sentimento de vingança, o mesmo que alimenta a guerra que assusta a população de São Paulo.