Muito além do massacre
A imprensa tradicional ainda é relevante?
A questão, formulada em observações anteriores, tem mexido com as crenças de alguns leitores e ouvintes.
Para os adeptos da teoria segundo a qual a imprensa serve apenas a si própria – contingente que parece crescer aceleradamente – o objeto da discussão está superado.
Para os leitores fiéis de jornais e revistas, bem como para os telespectadores que não perdem os principais telejornais, todas as especulações sobre o fim da mídia impressa ou da mídia unidirecional são apenas isso: especulações de futurólogos amadores.
Como em todo processo de mudança, o que ocorre com a indústria da informação e comunicação desautoriza afirmações radicais, como dizer que a leitura será substituída pela interpretação de imagens, hipótese muito popular entre os radicais da semiótica.
Porém, a crescente necessidade do aprendizado sobre aparatos digitais e aplicativos, condição básica para quem deseja ou necessita interagir socialmente no ambiente virtual, soma à exigência da alfabetização a obrigatoriedade de conhecer amplamente como funcionam os novos meios.
Se antes bastava saber ler para se beneficiar da mídia impressa e, no máximo, manipular o controle remoto para acessar a televisão unidirecional, agora é necessário muito mais para obter o melhor das redes digitais, inclusive a parcela de conteúdos oferecidos pela mídia tradicional no novo ambiente.
Há quem diga que os leitores de jornais e revistas sabem muito sobre algumas coisas, e que os usuários das mídias digitais têm a possibilidade de saber alguma coisa sobre muitos assuntos.
No entanto, a velocidade e profundidade das mudanças não permitem mais confiar nessas suposições genéricas.
Veja-se, por exemplo, o caso da tragédia ocorrida na cidade americana de Newtown, sexta-feira passada.
Entre as notícias dando conta de iniciativas para conter a venda de armas nos Estados Unidos, destaca-se no Estado de S. Paulo desta quarta-feira (19/12) a informação segundo a qual o grupo de investimentos que controla a maior parte da indústria do setor vai vender a empresa fabricante do fuzil AR-15 Bushmaster usado no massacre.
Tirando o sofá da sala
Publicada assim, no meio de outras repercussões da tragédia, a notícia soa como “tirar o sofá da sala”.
Mas há muito mais a ser considerado nesse fato, e o que se discute aqui é se a mídia tradicional teria condições de expandir essa notícia, que aparece isolada num jornal, para dar ao leitor a possibilidade de entender melhor a relação entre o assassinato de crianças dentro de escolas americanas e a composição do sistema global de negócios.
Se ficar restrito à leitura do jornal, o cidadão vai apenas acrescentar algumas curiosidades ao seu conhecimento sobre o assunto.
Se for às redes digitais de informação, ao contrário, poderá expandir muito seu conhecimento sobre o problema.
Primeiramente, com base no jornal, ficamos sabendo que a Cerberus Capital Management decidiu se livrar das ações do Freedom Group, seu braço financeiro voltado para o setor de armas e munições, ao qual pertence a fábrica dos produtos Bushmaster.
O leitor e ouvinte não perde se notar em suas reflexões que Cerberus é uma referencia direta ao cão de três cabeças, que, na mitologia grega, guarda as portas do inferno.
Também diz o Estadão que o executivo-chefe da Cerberus, Stephen Feinberg, decidiu vender parte de seus investimentos em armas porque seu pai mora na cidadezinha onde ocorreu o assassinato das crianças.
Seria, então, mais do que decisão de negócio, uma iniciativa para aliviar a pressão social sobre sua família.
Ora, mas o jornalão paulista também cita, de passagem, que fundos de pensão de professores aposentados e de funcionários públicos, que investem na Cerberus, estariam sendo pressionados a rever suas aplicações na empresa após a tragédia.
A partir dessas informações iniciais, o leitor vai à rede digital e descobre que as empresas de armas se beneficiam de investimentos como o dos professores aposentados, e com o atrativo do bom retorno financeiro, atuam contra os interesses dos próprios aposentados, apoiando congressistas que se opõem às políticas sociais do governo Obama.
A partir daí, o cidadão tem acesso a uma infinidade de informações que escancaram as contradições do sistema financeiro e político, mostrando uma parte das relações entre a indústria de armas e as forças conservadoras da sociedade americana.
Trata-se, como se pode constatar, de muito mais do que a ação isolada de um suposto psicopata.
Em que ponto desse relato a imprensa tradicional vai abandonar a pauta?