Na bola, o destino da Pátria
Quando a bola rolar no novo estádio do Corinthians, na zona Leste de São Paulo, para a partida inaugural da Copa do Mundo, não estará em jogo apenas o destino de uma taça.
Para os brasileiros, o torneio pode definir o balanço final do processo iniciado exatamente no dia 13 de junho de 2013, quando o Movimento Passe Livre reuniu pela primeira vez uma multidão de manifestantes capaz de paralisar a maior cidade do País, com passeatas marcadas pela ação violenta da polícia.
Passado um ano, o Brasil está diante da possibilidade de uma catarse cujos resultados são tema de especulações na imprensa.
Com o distanciamento possível no contexto das paixões intensas em torno do futebol, os jornais tentam isolar a política do esporte, mas esse tipo de reflexão equivale a puxar uma novena em pleno desfile de carnaval.
"Sem abandonar o espírito crítico", diz a Folha de S. Paulo em editorial, o jornal "deseja boa sorte à seleção brasileira".
O Estado de S. Paulo abandona momentaneamente seu caráter sisudo e afirma que "o que verdadeiramente importa, de hoje até o final da Copa, é torcer pelo hexacampeonato com o coração na ponta da chuteira".
O Globo admite que esse pode ser o torneio de futebol mais visto do planeta, repercutindo a ideia de que estaria sendo iniciada neste dia a "Copa das Copas": estima-se que 3,6 bilhões de pessoas em todo o mundo estarão acompanhando os jogos, uma plateia equivalente a mais da metade da população da Terra.
Finalmente, a imprensa hegemônica admite que, "mesmo fora de campo, o direito de sediar a competição trouxe benefícios para as cidades-sede", como afirma o diário carioca. "Ampliaram-se ou construíram-se estádios, houve avanços por conta de investimentos em infraestrutura e, não menos importante, o País consolidou-se como opção real para abrigar grandes eventos internacionais".
Parece que a bola propicia uma trégua na acirrada guerra entre a imprensa e a agremiação política que controla o Executivo federal.
Em 2014, como em 1931
Os cadernos especiais parecem reconciliar a imprensa com o jornalismo de qualidade, com infográficos caprichados que, quase inadvertidamente, mostram algumas das obras de infraestrutura que fazem parte do legado da Copa, como os novos recursos viários que facilitam o acesso ao estádio em Itaquera.
Embora este observador não costume fazer comentários "ad nominem", nas edições desta quinta-feira (12/6) é preciso destacar dois perfis, um de autoria do repórter Christian Carvalho Vaz no Estado de S. Paulo, e outro de Eliane Blum, na Folha de S. Paulo.
São bons exemplos de jornalismo literário capazes de amaciar a ranhetice deste crítico da mídia.
Mas o prazer da leitura não se limita à qualidade deste ou daquele texto ou de algumas imagens bem apanhadas: mais interessante é analisar o esforço que a imprensa faz para desvincular um eventual sucesso da empreitada brasileira, do ambiente político que virá depois do dia 13 de julho.
Já se disse neste espaço que esta será a Copa da catarse.
Isso não está contemplado nas muitas reflexões feitas por entrevistados e colunistas credenciados pela imprensa hegemônica, mas uma vitória do Brasil pode interromper a sucessão de protestos iniciada em junho do ano passado.
A condição para o encaminhamento das reivindicações para os canais institucionais é proposta pelo decreto presidencial no. 8.243, de 23 de maio de 2014, que institui a Política Nacional de Participação Social.
A iniciativa, barrada no Congresso, levantou uma onda de críticas na mídia.
Entre as manifestações mais representativas, destaca-se o artigo assinado na Folha de S. Paulo pelo jornalista Fernão Lara Mesquita (ver aqui), na qual o acionista do Estado de S. Paulo afirma que a medida é parte de um projeto de golpe comparável ao movimento civil-militar de 1964.
Mais ponderado, o ex-ministro dos governos José Sarney e Fernando Henrique Cardoso, economista Luiz Carlos Bresser Pereira (ver aqui), anota que tal interpretação é um verdadeiro nonsense, lembrando que a democracia participativa, tema do decreto, é um princípio constitucional.
A reação de Fernão Mesquita apenas repete o que fez a imprensa em 1931, quando Getúlio Vargas criou os conselhos consultivos no âmbito dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (ver aqui), provocando a ira da elite paulista, que conduziu a crise à guerra civil de 1932.
Há uma trégua no ar, e uma resposta do governo para as reivindicações das ruas, mas a imprensa hegemônica prefere o confronto.
Fica para depois da Copa.