No tempo das raposas felpudas
Houve época em que os principais protagonistas da política nacional eram atores do porte de Ulisses Guimarães, Leonel Brizola, Franco Montoro e Teotônio Vilela.
Era comum, então, o uso da expressão “raposa felpuda” para identificar aqueles mais argutos no jogo do poder.
José Sarney é desse tempo, e a longevidade de sua carreira na política dá conta de sua capacidade de articulação sem limites.
Os lances de então eram comparados a um jogo de estratégias – o xadrez político, dizia-se.
O cenário era o da reconstrução da democracia, após o processo interrompido pela ditadura militar, e esses personagens buscavam moldar o país conforme suas crenças ideológicas.
No centro da disputa, balançando de lá para cá, atuava o chamado “Centrão”, que teve como figura emblemática o deputado Roberto Cardoso Alves, que se celebrizou com a frase “é dando que se recebe”.
Em torno de “Robertão” vicejou a matilha que os repórteres e analistas da política batizaram de “baixo clero”.
Esses viviam de pequenos favores, restos de verbas orçamentárias para suas bases eleitorais e um espaço atrás dos ombros das verdadeiras celebridades nas fotografias dos jornais e imagens da TV.
Não costumavam ocupar o tempo das tribunas, reservado para os bons oradores, capazes de criar “bordões” que a imprensa reverberava pelo país afora.
Hoje os tempos são outros.
O único exemplar da espécie das “raposas” que ainda pode ser visto no Cerrado é o velho cacique do Maranhão – que acabou agregando outra capitania hereditária, a do Amapá.
Em torno dele, e com sua ajuda, o “baixo clero” evoluiu para o cardinalato.
Figuras miudas como o senador Renan Calheiros habituaram-se ao topo do poder – com tudo que já lhe foi imputado, Calheiros ainda manobra para ser o sucessor de Sarney na presidência do Senado.
O velho xadrez foi subsituido por outro jogo, menos sofisticado e mais bruto – uma espécie de Banco Imobiliário.
O “é dando que se recebe” virou uma ameaça: “se não der, voto contra, aumento os gastos públicos e derrubo a economia”.
E a imprensa?
Nesse período, a imprensa fez uma sequência de movimentos para dentro do campo.
Primeiro deixou as cabines de transmissão e se apropriou do apito.
Depois, largou o apito e vestiu um dos uniformes.
Agora, tenta assumir o lugar do treinador.
Lei da Ficha Limpa
Assim é que o noticiário político se apresenta nestes dias: a imprensa publica denúncias de corrupção, os acusados abandonam seus cargos em troca de um anonimato que imaginam temporário, na esperança de retornar ao poder numa próxima eleição, e as peças se movem continuamente no tabuleiro.
Aliados do governo ameaçam pular para o lado da oposição, mas ali a ração é parca – e tudo cheira a blefe.
Os outrora renhidos oposicionistas recebem a presidente e lhe fazem agrados, tudo em nome do combate à corrupção e da eliminação da miséria.
As intenções não poderiam ser melhores, mas o leitor atento não pode se esquecer de que nem tudo é o que parece.
Nesta segunda-feira, o estranho bailado dos políticos é assunto de muitos dos analistas da imprensa.
O tema subjacente é a possibilidade de uma nova aliança entre o governo e parte da oposição, capaz de colocar limites à corrupção e estabelecer um controle restrito aos gastos públicos.
Em alguns artigos, a presença da presidente Dilma Rousseff no Palácio dos Bandeirantes, ninho de tucanos, é puro jogo de cena, apenas retórica na qual os oposicionistas “caem como patinhos”.
Em editorial, dá-se uma força à chefe do Executivo diante do dilema entre cortar gastos e ceder à fome de recursos dos aliados.
Nas entrelinhas dos textos, observe-se a ilusão recorrente da imprensa de que são os jornalistas que conduzem os movimentos na política.
Mas a realidade não permite muitas ilusões: a verdadeira mudança não ocorre no centro do poder, mas na periferia, a partir do voto consciente.
O Brasil começará a mudar quando os eleitores deixarem de mandar para Brasília “raposas felpudas” ou reles gambás.
Retomar a campanha pela efetividade da Lei da Ficha Limpa já seria um bom ponto de partida.