O discurso da imprensa
Um exercício interessante para quem se interessa pela observação da mídia é analisar o seu discurso no contexto de cada conjunto de temas ao longo de um certo período de tempo.
Esse olhar deve incluir, em blocos distintos, o conteúdo noticioso, os editoriais que refletem a opinião do veículo e, paralelamente aos editoriais, os textos dos articulistas fixos.
Também é conveniente definir um período que tenha algum significado, como, por exemplo, o tempo que se segue após um evento importante na política ou na economia.
Uma das primeiras constatações deixa claro que a mídia tradicional, de modo geral, pensa em bloco – como dizia, antigamente, o velho Pasquim.
Tomando-se, por exemplo, como ponto inicial a posse da presidente Dilma Rousseff, pode-se observar que a mídia passou duas semanas especulando sobre o que seria o novo governo e, uma vez estabelecida a percepção de que não se trataria de uma continuação do governo anterior, mudou o tom dos comentários sobre política.
Na análise dos valores subjacentes ao discurso presente em manchetes e títulos importantes, pode-se afirmar que a imprensa, como conjunto corporativo, buscava uma aproximação.
Não apenas na escolha das palavras, mas principalmente na hierarquia das notícias, pode-se afirmar que a imprensa brasileira ensaiou uma fase de “paz e amor” com o governo, sem no entanto abdicar de apresentar, aqui e ali, suas preferencias quanto a decisões futuras da presidente.
Uma vez fumado unilateralmente o cachimbo da paz, iniciou-se a fase da marcação de território, com o despejo de denúncias contra integrantes do governo, que conduziu à sucessão de mudanças no ministério.
Interessante observar também que, uma vez concretizado o objetivo de afastar o acusado, cessavam as acusações.
O rescaldo geral dos escândalos é um amontoado de afirmações, declarações, conversas e papéis cuja validade como prova judicial ainda não foi testada.
Claro que todos os casos podem levar um dia a condenações, mas a imprensa já não parece interessada na verdade.
Em todos esses eventos, o discurso presente na mídia tradicional foi ambivalente, no sentido em que atacava as entranhas do governo mas buscava preservar a presidente.
Cunhou-se, então, a marca da faxina moral, com a qual se pretendia isolar a presidente de seu antecessor e padrinho político, fazendo com que a urgência de se livrar de auxiliares incômodos – tornados incômodos pela ação da imprensa – levasse a presidente da República a se descolar de seu grupo de correligionários e alianças.
Diversão garantida
A intenção subjacente no discurso era, claramente, quebrar no imaginário social os vínculos entre a criatura e seu criador, desfazendo o elo que dá uma integridade à estratégia do Estado e permite projetar o atual governo como parte de um processo que se iniciou em 2003.
Na mesma época, amadureciam estudos e pesquisas que consolidam os ganhos sociais e econômicos produzidos no período: o Brasil alcançou oficialmente o sexto lugar entre as maiores economias do mundo, manteve-se pouco suscetível à crise na Europa e às consequências da mudança de rumos na economia americana e viu consolidar-se como força de produção de riqueza um contingente social que até poucos anos antes era tido unicamente como fator de custo.
Não havendo como demonizar a estratégia porque ela funcionou, beneficiando inclusive as empresas de comunicação, tratava-se de estabelecer um ponto de ruptura – e ele foi tentado no campo político.
A reação imediata da presidente, cortando na própria carne do governo à primeira suspeita de irregularidade, não alterou o discurso, que só começou a mudar quando ela rejeitou explicitamente a qualificação de “faxineira”.
A doença do ex-presidente Lula da Silva e as pesquisas de opinião revelando que a estratégia havia ajudado a construir uma imensa popularidade para sua sucessora minaram o objetivo implícito no discurso da imprensa.
Ao mesmo tempo, a continuidade da percepção de bem-estar, com medidas que desfizeram as apostas da mídia num recrudescimento da inflação e a redução das taxas oficiais de juros, produziram uma aprovação recorde do governo.
Agora se apresenta aos observadores um cenário interessante, no qual se acusa um dos personagens prediletos da imprensa tradicional de ser na verdade um dos principais operadores do lobby do crime organizado em várias instâncias do poder.
Para manter alguma coerência, a imprensa precisa manter o discurso da correção política. Para preservar seu significado institucional, precisa abrigar as denúncias com o mesmo empenho que dedicou aos escândalos anteriores.
E, principalmente, não poderá omitir os casos eventuais em que organizações da própria imprensa tenham sido apanhados negociando com bandidos.
O leitor que se diverte com a leitura das entrelinhas não terá motivos para tédio.0