Wednesday, 27 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

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O “reality show” da cracolândia

A expressão foi cunhada pela jornalista Eliane Trindade, colaboradora da Folha de S.Paulo, e retrata bem em que se transformou a operação policial na região central da capital paulista.

O “reality show” da cracolândia tem até mesmo um falso ex-integrante de banda de pagode, que virou celebridade instantânea ao mentir para as câmeras de TV.

Em busca de personagens, repórteres vasculharam na quarta-feira as ruas tomadas por policiais, e o resultado está nas páginas dos jornais nesta quinta, dia 12.

A principal constatação é de que o contexto é muito mais complexo do que poderiam imaginar as autoridades policiais que planejaram a operação.

Foi possível constatar, por exemplo, que muitos dos usuários que perambulam pelas ruas são também microtraficantes, que revendem parte da droga que compram para financiar seu próprio vício.

Não poderia haver expressão melhor para definir o que está na imprensa: o desfile do elenco de miseráveis mostra a realidade de uma sociedade que não se preparou para o advento de uma droga de baixo custo e efeito devastador.

Os protagonistas do “show” exibido pela televisão nos últimos dias têm a oferecer dramas que superam em muito a ficção das novelas.

Além disso, a transformação das ruas do bairro de Santa Ifigênia em território livre para os traficantes, com seus efeitos desastrosos sobre a vida da cidade, deveria entrar nos debates tão apreciados por celebridades da política sobre a descriminalização das drogas.

O Estado de S.Paulo investe no aspecto oficial da operação, informando que a presença da polícia deverá durar pelo menos mais seis meses – o que certamente levará os chefões do tráfico a mudar sua estratégia, estimulando o surgimento de novas “cracolândias” em outros pontos da cidade.

O jornalão paulista também acompanha a crise aberta entre o secretário de Segurança Pública, Antonio Ferreira Pinto, e o Ministério Público do Estado, que decidiu investigar a operação policial na “cracolândia”.

Com toda certeza, algumas das câmeras que percorrem a região nestes dias, registrando a ação da Polícia Militar, estarão a serviço dos responsáveis por campanhas eleitorais.

O “reality show” não tem hora para acabar e deve ganhar um “remake” durante a disputa pela prefeitura de São Paulo, no segundo semestre.

Os filhos do cachimbo

No cenário do “reality show”, a Folha de S. Paulo dá a medida da precipitação da ação policial ao informar que a principal iniciativa da Prefeitura de São Paulo para dar assistência a dependentes de drogas no centro da cidade, o Complexo Prates, será inaugurado ainda incompleto.

Planejado para atender até 1.200 pessoas por dia, o núcleo deverá ser aberto no dia 8 de fevereiro, mas ainda sem as unidades de assistência médica e o centro de apoio psicossocial, que deverão ser entregues em março, mesmo com a aceleração das obras.

O jornal foi procurar as mulheres grávidas que vivem na cracolândia e descreve o que pode acontecer a seus bebês: atraso de desenvolvimento, sequelas neurológicas, retardo e deficit de aprendizagem.

Também apostou numa reportagem sobre o perfil do tráfico de crack.

Resultado: a polícia só consegue prender os pequenos traficantes e alguns donos de laboratórios de refino e produção da droga, mas as autoridades não têm a menor ideia sobre como funciona o sistema.

Segundo o jornal, a polícia sabe até que existem “sócios investidores”, cidadãos acima de qualquer suspeita que aplicam dinheiro no narcotráfico por causa dos altos rendimentos, mas esses e os grandes operadores permanecem “invisíveis” para os investigadores.

Com foco apenas no usuário e no pequeno varejista e ainda sem apoio efetivo de assistentes sociais e equipes médicas, a operação policial conseguiu por enquanto apenas dispersar os viciados e alertar os grandes traficantes para a conveniência de mudar sua estratégia.

Basta ler os números que trazem os jornais: antes da operação policial, calculava-se que o principal grupo de usuários que se concentravam na cracolância era formado por mais ou menos seiscentas pessoas.

No início desta semana, as investidas da Polícia Militar encontravam grupos de no máximo cem pessoas, que eram dispersadas para se reunir novamente em outro ponto da região.

Como resultado imediato dessa ação, o traficantes atraem seus clientes para outros locais de concentração, e surgem “minicrocracolândias” na Praça Roosevelt, na Praça da Sé, nos baixos de viadutos a caminho do aeroporto de Congonhas e até na Praça Buenos Aires, que tem como um de seus vizinhos ilustres o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.