Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

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O sopro do Espírito Santo

A imprensa de modo geral, e os jornais brasileiros em particular, devem deixar esmorecer, nos próximos dias, o noticiário sobre o novo papa.

No sábado, com exceção do Estado de S. Paulo, os principais diários de circulação nacional já dedicavam as manchetes à antecipação da campanha presidencial de 2014, com a esperada louvação de um candidato oposicionista e as habituais críticas ao governo.
Já é um mantra recitado dia sim, dia não, e parte do que os jornais consideram sua missão crítica.

Sobre os eventos de Roma, a imprensa tratava de agasalhar a versão oficial de que o cardeal Jorge Mario Bergoglio nunca teve ligações com a ditadura militar argentina.

O papa Francisco estaria, portanto, livre de prestar contas de seu passado.

No domingo, os jornais se dividiam entre as tarefas de encaminhar o debate diretamente para o campo religioso, com a Folha de S. Paulo tendo um surpreendente ataque de pieguice, a afirmar em título na primeira página que "papa deseja uma igreja pobre e para os pobres".

Estado de S. Paulo também deixava para trás as explicações sobre o passado de Bergoglio com uma espécie de justificativa na manchete: "Papa diz que natureza da Igreja é espiritual, não política".

Apenas o Globo, numa manobra que claramente tenta mesclar o campo político ao campo religioso, afirma em grandes letras que "novo papa muda jogo do poder na América do Sul".

Mais do que uma ousadia editorial, trata-se da manifestação de um desejo, aquilo que em inglês se chamaria "wishful thinking": a imprensa deseja que o novo papa, por ser argentino e opositor declarado da política econômica que predomina na região, venha a liderar as forças conservadoras que se opõem ao prosseguimento dos projetos de promoção social que vêm mudando o perfil da maioria dos países da América Latina.

Nesse esforço, o leitor distraído não há de notar que certas expressões que antigamente os esquerdistas usavam para se referir à caridade religiosa são de repente viradas do avesso: agora as políticas sociais que tiram milhões da miséria é que são "assistencialistas" e "clientelistas" e seus autores são chamados de  "populistas".

O escândalo ficou no ar

 

Nesta segunda-feira (18/03), os jornais consolidam a acomodação do tema no campo religioso e absorvem a estratégia de comunicação da Igreja, ao mostrar um Francisco simples, afável e popular, quebrando protocolos e se deixando tocar pelos fieis como um astro pop que desce do palco.

Também se pode registrar as tentativas de resgate da credibilidade por parte de alguns analistas que deixaram a desejar durante o período de adivinhações sobre o nome do sucessor de Bento 16.

Em um texto, Francisco é o papa que vai reformar a Igreja, em outro é o jesuíta que vai conciliar a religião com a ciência, num terceiro ele aparece como o disciplinador feroz que irá investigar e punir os casos de abuso sexual cometidos por sacerdotes católicos.

Enquanto se dissipa o fenomenal entusiasmo da imprensa pela Igreja, nascido do ato inédito, em tempos modernos, da renúncia de um papa, também se acumulam os resíduos de uma cobertura feita à base de declarações, mitos e chutes de todas as distâncias.

Como se o Espírito Santo, depois de haver soprado sobre os vates da imprensa, decidisse recolher-se ao seu lugar na Santíssima Trindade.

Assim como não foram capazes de sequer se aproximar da hipótese de o cardeal Bergoglio vir a ser eleito papa, os vaticanistas reconhecidos e os "especialistas" instantâneos ungidos apressadamente para a viagem a Roma voltam à tarefa de rastrear novos assuntos, depois de terem levantado tanta poeira.

Por  exemplo, desde que surgiu o boato de que o papa Bento 16 havia recebido um dossiê contendo denúncias escandalosas sobre integrantes da cúria romana, os jornais agasalharam a informação como sendo absolutamente verdadeira, estimulando fantasias dignas dos mais grotescos filmes pornográficos.

Corre pela internet, eventualmente com o timbre de jornalistas, a teoria segundo a qual Ratzinger foi chantageado a renunciar para evitar a publicação de imagens altamente corrosivas envolvendo cardeais em saunas e encontros sexuais.

Mas nunca foi apresentada ao público uma linha sequer de tal dossiê, ou revelado qualquer detalhe por fonte idônea que lhe emprestasse alguma credibilidade.

Da mesma forma, a imprensa vem dando curso à enxurrada de denúncias sobre pedofilia na igreja católica, sem considerar que todo pedófilo procura atividades que o coloquem em contato com potenciais vítimas, seja em paróquias, em escolas infantis ou em grupos de escoteiros.

Confrontar as estatísticas de casos de pedofilia envolvendo padres católicos com os números de outros grupos, como o de pastores evangélicos, pais-de-santo, monitores de acampamentos e assistentes sociais, seria o mínimo de cuidado para oferecer ao público uma noção mais realista do problema.

Mas a cobertura fenomenal sobre a mudança no Vaticano se esvai sem que a imprensa tenha ido além da superfície.