Porque as redes assustam a imprensa
Há centenas, talvez milhares, de importantes ações culturais coletivas pelo Brasil afora, reunindo gente de teatro, músicos, produtores de artes visuais, grupos de folclore e cultura indígena, centros de preservação de tradições de imigrantes e de afrodescendentes.
A maior parte dessas iniciativas pode receber verbas federais, desde que o então ministro da Cultura Gilberto Gil criou, em 2004, o sistema de editais, que permitiu descentralizar os recursos públicos e estimular pequenos grupos, com pouca estrutura e muita informalidade, a realizar seus projetos.
Em março de 2008, Gil criou o Observatório dos Editais, abrigado no site oficial do Ministério (ver aqui), pelo qual os interessados se informam sobre as oportunidades de patrocínio.
O processo é relativamente simples e tem um sistema de monitoramento que resulta, entre outras coisas, na profissionalização de produtores culturais e na consolidação de entidades que sobreviviam a duras penas antes do programa de apoio.
O Ministério tem também uma Secretaria de Economia Criativa, que oferece treinamento para gestores de empreendimentos culturais, ajudando-os a usar com eficiência os recursos dos editais.
Quem vasculhar alguns jornais regionais vai encontrar anúncios de festivais de música e dança, exposições, festas populares, fóruns de arte e outras iniciativas, que movimentam centenas de milhões de reais.
Mais de 5.500 municípios estão incluídos num ranking que classifica as ações culturais, permitindo a pesquisadores avaliar a diversidade e quantidade de expressões artísticas em andamento, constatando a dinâmica dessas manifestações populares.
Os agentes culturais são organizados em mais de 2,5 mil Pontos de Cultura, que funcionam como mediadores entre o Estado e a sociedade em cerca de 1.200 cidades.
Há sempre alguns grupos com dificuldades de gestão, mas o sistema de auditoria continua ativo e disponível no site do Ministério da Cultura.
A mídia tradicional nunca deu importância e essa iniciativa, que há quase dez anos estimula a diversidade cultural em todas as regiões do País.
Numa dessas raras ocasiões, o Globo produziu, em marco de 2012 (ver aqui) uma ampla reportagem, afirmando que o atual governo estava esvaziando o programa do ex-ministro Gil.
Jornalismo orgânico
As Casas Fora do Eixo, coordenadas por Pablo Capilé, nasceram dessa política cultural.
Elas formam uma constelação de produtores, que a partir dos Pontos de Cultura conseguem obter recursos dos editais de maneira mais organizada, o que ajuda a consolidar a maior parte de seus programas.
Como todas as outras iniciativas, o Fora do Eixo está sujeito a atrasos no recebimento das verbas, desvios, erros de gestão e até mesmo má-fé.
A exposição despropositada de Capilé nos meios de comunicação, desde a eclosão das manifestações promovidas pelo Movimento Passe Livre, o transformou em objeto de minucioso escrutínio.
Todo indivíduo ou organização, submetido às lentes fracionadas das redes sociais digitais, pode ser qualquer coisa, e por esse motivo as empresas precisam de especialistas para suas estratégias de marketing nesse ambiente hipermediado.
A enorme complexidade e diversidade das interpretações a que qualquer tema é submetido nessas redes torna praticamente imprevisível o resultado da exposição intensa.
No entanto, sabe-se que a mídia tradicional funciona como uma espécie de âncora para o conteúdo difuso das redes.
Assim, se um colunista de jornal ou revista pinça determinado aspecto de um evento, essa ação vai desencadear reações em rede, geralmente de curta duração e muita intensidade.
O que está acontecendo com o Fora do Eixo é uma ação organizada, na qual agentes da mídia tradicional, apoiando-se em intelectuais pouco familiarizados com o ambiente digital, produzem o linchamento moral de Capilé e do Fora do Eixo.
Mas tudo indica que o alvo principal não é o coletivo de produtores culturais: o objetivo é questionar a experiência derivada dessa iniciativa, o grupo denominado Mídia Ninja.
O que está em confronto é o jornalismo clássico, que se tornou refém da indústria da comunicação, e o midiativismo das redes.
Não está em jogo a hipótese, improvável, de o midiativismo vir a substituir o jornalismo tradicional, mas, assim como na área cultural os coletivos não institucionalizados disputam com sucesso as verbas públicas com grandes produtoras, em algum momento um investidor inteligente pode descobrir o potencial de negócio implícito no jornalismo espontâneo e orgânico que acompanha as manifestações de protesto.
É esse temor que as corporações de comunicação não podem confessar.