Quem sai no retrato
Os jornais desta quinta-feira (22) refletem uma circunstância corriqueira na relação da imprensa com o poder político e reproduzem o estado de guerra que domina o ambiente midiático.
As manchetes e outros títulos de destaque nas primeiras páginas procuram exacerbar as dificuldades da economia nacional, ao mesmo tempo em que tentam colocar o problema de abastecimento de água em São Paulo na conta das mudanças climáticas.
O conjunto de notícias e opiniões que os diários apresentam como a síntese do período induz o leitor a acreditar que o Brasil é um comboio em direção ao abismo, e que o condutor, o ministro da Fazenda, Joaquim Levy, está tomando as providências para reduzir a velocidade e desviá-lo de volta para o trilho do desenvolvimento.
A presidente da República, responsável pela estratégia que o ministro deve administrar, é citada quase exclusivamente no meio de declarações sobre o escândalo da Petrobras.
Há espaço, ainda, para a fotografia do presidente reeleito da Bolívia, Evo Morales, envergando a bata tradicional na cerimônia indígena que antecede sua posse.
Com exceção do Estado de S. Paulo, os jornais expõem na primeira página a imagem de Morales junto a xamãs nativos, acompanhada de textos que mal dissimulam o preconceito.
No Globo, o título do conjunto é: "Dom Evo I". Na Folha de S. Paulo, o título chega próximo da zombaria: "Pelos poderes de Evo", diz o jornal paulista.
A imprensa não suporta essa coisa de indígena fora de reservas, ocupando palácio de governo e resolvendo problemas centenários de seus países.
Como se vê, há uma série de elementos a serem observados nas escolhas dos editores.
Um dos aspectos mais interessantes é o posicionamento que a imprensa faz dos principais protagonistas da cena pública.
Evo Morales, que vai para seu terceiro mandato com um histórico de êxitos na recuperação da economia e da autoestima dos bolivianos, é retratado como uma aberração excêntrica, numa América Latina cuja elite se imagina europeia.
A presidente do Brasil vira personagem secundária na crônica do poder.
Por outro lado, o governador de São Paulo, responsável direto pela crise que ameaça o bem-estar de milhões de cidadãos, é retirado de cena quando deveria estar respondendo perguntas incômodas, porém cruciais.
Racionamento de fato
Se a imprensa aprova as medidas anunciadas pelo governo federal, o destaque vai para o ministro da Fazenda.
Se a imprensa se vê na contingência de reconhecer o descalabro na gestão dos recursos hídricos e no sistema de distribuição de energia em território paulista, o foco vai para auxiliares do segundo ou terceiro escalão.
O governador Geraldo Alckmin aparece apenas para criticar a empresa responsável pela gestão da energia, AES Eletropaulo, numa clara manobra para criar um novo foco de atenção e desviar do Palácio dos Bandeirantes o olhar crítico do público.
O isolamento da presidente Dilma Rousseff no noticiário sobre medidas econômicas (que a imprensa apoia) vem acompanhado de comentários que amplificam supostas reações de dirigentes de seu partido às medidas anunciadas pelo ministro da Fazenda.
Assim, o leitor é induzido a pensar que Joaquim Levy conduz a economia à revelia da presidente e contra a orientação do partido que a reconduziu ao poder.
No caso paulista, quem vai para a frente da batalha comunicacional é o presidente da Sabesp, Jerson Kelman, que em artigo na Folha de S. Paulo tenta convencer o cidadão de que não há racionamento de água, mas pode vir a acontecer.
Aproveita para reconhecer que a principal causa da crise hídrica é a fartura de vazamentos na tubulação.
São 64 mil quilômetros de tubos enterrados sob o asfalto da região metropolitana, uma extensão correspondente a uma volta e meia em torno do planeta.
O presidente da Sabesp só não explica por que seu chefe, o governador Geraldo Alckmin, não exigiu que a empresa corrigisse essa deficiência desde a primeira vez que ocupou o Palácio dos Bandeirantes, em 2001.
E a Folha de S. Paulo esquece que publicou no dia 12 de outubro de 2003, um domingo (ver aqui), uma reportagem na qual alertava para o fato de que, se nada fosse feito para reduzir as perdas, a região metropolitana só teria água até o ano de 2010.
Nada foi feito. Tudo que sai dos mananciais do sistema Cantareira se perde nos vazamentos.
A Sabesp raciona a água, a imprensa faz o racionamento dos fatos.