Um pouco de justiça
A morte de Hugo Chávez Frías, presidente da Venezuela eleito seguidamente por quatro mandatos, obriga os jornais brasileiros a lhe fazer alguma justiça.
Os cadernos especiais que engordam os diários nesta quarta-feira (06/03) trazem conteúdos tão diferentes da imagem que a imprensa nacional construiu para ele ao longo dos últimos anos, que o leitor distraído haverá de pensar que se trata de personagens diferentes.
Vivo, Chávez era pintado como um ditador populista; morto, é quase um estadista revolucionário.
Articulistas dos grandes jornais lhe fazem epitáfios generosos nos mesmos espaços onde costumavam demonizar seu projeto de governo.
Tabelas e infográficos revelam que, ao contrário do que se dizia, ele não afundou a Venezuela num abismo econômico; ao contrário: reduziu a pobreza, conteve o desemprego, controlou a inflação e deslocou seu país de uma posição subalterna em geopolítica e o colocou como protagonista de grandes questões mundiais.
Não é pouco para quem, enquanto viveu, foi apresentado como irresponsável, autoritário, inimigo das liberdades e incompetente como chefe de Estado.
Uma comparação entre os jornais oferece alguma vantagem à Folha de S. Paulo, por duas razões muito simples: o jornal paulista trocou parte do opiniário por informações objetivas e a principal articulista convidada a fazer o perfil de Chávez, Julia Sweig, teve a humildade de reconhecer, em seu texto, que ainda é cedo para análises mais corretas do que ele representou para a Venezuela e a América Latina. “Os historiadores que se debruçarem sobre o período dentro de algumas décadas vão dispor de ferramentas mais amplas para avaliar mais profundamente o legado de Chávez”, diz a articulista.
A dívida pública subiu e a violência, vista pelo número de homicídios por cem mil habitantes, aumentou muito, mas há controvérsias derivadas da melhoria nos registros policiais nesse período.
Conquistas sociais
De acordo com a visão oferecida pela Folha, Hugo Chávez foi um homem do seu tempo, radicalmente fiel ao conjunto de valores que dominaram a política latino-americana neste início de século: crescimento com inclusão social, consenso em defesa da democracia, e independência em relação à diplomacia condicionada aos interesses de segurança dos Estados Unidos.
Por conta dessa política que se opunha aos dogmas do chamado liberalismo econômico, a imprensa se vê obrigada a registrar que, em seus três mandatos integrais, a pobreza extrema caiu de 20,3% para apenas 7% da população venezuelana, um resultado superior ao fenômeno do resgate social obtido pelo Brasil no mesmo período.
Outro aspecto interessante nos indicadores apresentados pela Folha é o conjunto de gráficos sobre o crescimento do PIB nas principais economias sul-americanas, que mostram como a Venezuela, por depender exclusivamente do petróleo, sofreu o maior impacto da crise financeira de 2008, mas reagiu de maneira mais consistente do que a maioria dos países da região.
Os gráficos publicados pelo Estadão não deixam tão claras as conquistas do líder controverso e o Globo apenas cita alguns desses números em um texto de sua correspondente.
O jornal carioca destaca a estatização da economia venezuelana, mas admite que “em termos de indicadores, de fato, a revolução bolivariana conseguiu reduzir de forma expressiva a pobreza”.
No mais, a imprensa brasileira discute se ele foi um caudilho, um líder populista ou um revolucionário, destaca seu temperamento histriônico, relata sua guerra com os grandes conglomerados de comunicação da Venezuela e investe em adivinhações sobre o futuro do chavismo.
Restam, então, algumas questões.
Uma delas: se Chávez produziu mudanças tão radicais e positivas na economia e na sociedade venezuelanas, por que suas conquistas foram ocultadas pela imprensa brasileira enquanto ele viveu?
Se o objetivo do desenvolvimento econômico é promover crescimento com redução das desigualdades – e ele conseguiu isso sem ameaçar a democracia, como destacam os jornais –, por que razão foi demonizado desde que chegou ao poder?
A imprensa só faz justiça nos obituários?