Uma tese polêmica
O propósito da reportagem publicada com destaque na revista Época desta semana era questionar o processo de concessão, pela Unicamp, do título de doutor em Ciências Econômicas ao ministro da Educação, Aloizio Mercadante.
O exame do estudante tardio, que havia interrompido os estudos para o doutorado doze anos antes, aconteceu em dezembro de 2010, razão pela qual pode parecer estranho ao leitor que o tema venha a interessar de repente a imprensa, não havendo outra razão aparente para tal, além do fato de o doutorando ter assumido recentemente o Ministério da Educação.
O texto da reportagem joga com uma intenção de ironia pelo fato de ser organizado em estilo de tese acadêmica.
Relata, basicamente, o processo de defesa da tese de 537 páginas que tem como tema “As bases do Novo Desenvolvimentismo no Brasil: análise do governo Lula (2003-2010)”, no qual Mercadante sustenta que os dois mandatos do ex-presidente Lula da Silva representaram uma ruptura com o modelo de desenvolvimento proposto por seu sucessor, Fernando Henrique Cardoso, e fundaram “um novo padrão de desenvolvimento substancialmente distinto tanto do neoliberalismo quanto do antigo nacional-desenvolvimentismo predominante no passado”.
A reportagem foi escrita com base na tese (disponível em www.bibliotecadigital.unicamp.
A banca era formada pelos professores Antonio Delfim Netto, Luiz Carlos Bresser Pereira, Ricardo Abramovay e João Manuel Cardoso de Mello. Bresser Pereira e Cardoso de Mello, ou seja, metade da banca, são historicamente ligados ao PSDB, tendo sido ambos parte do grupo que formulou o Plano Real – mas a reportagem insinua que o novo doutor em Economia foi beneficiado por um processo heterodoxo e favorecido por arguidores apontados como aliados ou apoiadores do governo Lula da Silva.
O texto da revista concentra-se basicamente nas críticas e restrições apresentadas durante os debates, e apresenta como ponto central uma suposta liberalidade da Unicamp ao aceitar como contribuição original uma versão mais extensa de um livro publicado anteriormente pelo próprio Mercadante.
A acusação, no caso, seria de autoplágio.
No fim, espalha suspeitas de favorecimento sobre a Comissão de Pós-Graduação da Unicamp e insinua que pelo menos dois dos integrantes daquela banca acabaram ganhando posições importantes ou apoio do governo federal.
A questão central
A reportagem de Época é excelente exemplo para uma análise acadêmica do processo de decisão típico da imprensa tradicional no Brasil.
Trata-se de um modelo de comunicação linear no qual a qualidade do texto e a profusão de informações servem como artifícios para uma ideia preconcebida que se quer impor ao leitor.
Mas, como toda mensagem viciada pela intenção de opinar antes da interpretação do receptor, ela traz em si o germe da contradição.
Lido atentamente, e retiradas as arapucas armadas pelo autor, pode-se chegar a uma conclusão absolutamente oposta à das conclusões sugeridas pela reportagem – ou seja, a de que o então doutorando Aloizio Mercadante – aprovado pela banca por unanimidade – tem méritos justamente por ter abdicado temporariamente da vida acadêmica para participar de um projeto político importante e, posteriormente, ter transplantado para a pesquisa acadêmica sua experiência política.
Alguns dos entrevistados que levantam suspeita de favorecimento ao ministro-estudante também podem ser acusados de se haverem beneficiado de correligionarismo em suas carreiras, uma vez que ninguém esconde o fato de que as escolas de economia das universidades brasileiras funcionam quase como torcidas organizadas de futebol – salvas cada vez mais raras exceções.
O argumento de que ele teria usado uma obra anterior – um livro de sua própria autoria sobre tema correlato – como base para a tese de doutorado, também pode ser facilmente relativizado.
Para citar apenas um exemplo entre milhares, basta lembrar que o livro “Enigma do Homem – Para uma Nova Antropologia”, do filósofo e antropólogo francês Edgar Morin, antecedeu e lastreou algumas de suas teses mais importantes.
Mas o que se quer demonstrar aqui é que a questão central da reportagem de Época não é extamente o processo de obtenção do título de doutor em Economia pelo ministro Aliozio Mercadante.
A questão presente na reportagem é a afirmação da tese de Mercadante de que os dois governos de Lula da Silva representaram uma mudança no paradigma de desenvolvimento do Brasil.
A imprensa tradicional do Brasil não engole essa tese, mesmo que o próprio Adam Smith baixe no corpo de um economista da FEA-USP para afirmar que isso é uma verdade científica.