A vontade das armas
Passados os primeiros dias após o chocante massacre de crianças numa escola municipal do bairro de Realengo, zona Oeste do Rio, a imprensa começa a buscar possíveis influências no ato insano do jovem assasssino.
Os jornais e revistas do final de semana acompanham as novidades das investigações, como a descoberta da origem de uma das armas usadas no crime, e dão curso a especulações de especialistas sobre as possíveis motivações do criminoso.
No meio do caminho, algumas publicações encontram espaço para colocar, genericamente, entre os suspeitos, um suposto grupo de radicais islâmicos.
Na vertente mais consistente das reportagens, a anunciada iniciativa do governo federal de retomar as campanhas pelo desarmamento produz alguma repercussão, com reportagens apontando a redução dos casos de violência toda vez que se leva ao público informações objetivas sobre os riscos da posse de uma arma de fogo.
No entanto, ainda há muita tergiversação em favor da liberdade para se armar.
Nesse sentido, amplo destaque para o título de um texto publicado na revista Veja: “As armas sozinhas não matam ninguém”.
A tosca tese da revista, segundo a qual criminalizar as armas seria um ato inócuo, lembra certa expressão criada por Nelson Rodrigues para identificar alguns colegas de redação.
Os “idiotas da objetividade”, expressão usada por Nelson Rodrigues para perseguir os copidesques, ou redatores que “limpavam” seus textos do que consideravam excessos literários, serve bem para qualificar aqueles que usam argumentos supostamente objetivos para defender o direito de andar armado em uma sociedade que se deseja pacífica.
A expressão “as armas sozinhas não matam ninguém”, muito popular nos clubes de tiros e nas associações mantidas pela indústria de armas nos Estados Unidos, contém essa objetividade idiota.
Não é preciso uma tempestade cerebral para concluir que, evidentemente, as armas não costumam saltar de seus estojos e sair disparando por sua própria vontade.
Mas também não é preciso ser um gênio para entender que a facilidade do acesso a uma arma de fogo aumenta exponencialmente o risco de que ela seja usada.
A sombra do preconceito
Entre as melhores contribuições para o debate sobre o uso de armas de fogo pode-se apontar a reportagem publicada no domingo, dia 10, pelo Estado de S.Paulo.
Em sete de dez escolas de tiro procuradas pelos repórteres, não havia necessidade de comprovar antecedentes criminais nem passar por teste psicológico para ser aceito como aprendiz de pistoleiro.
O jornal paulista também registra que, entre 2001 e 2007, nada menos do que 13 mil vidas foram poupadas como resultado do Estatuto do Desarmamento, segundo estudo conjunto do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada da USP e da Pontifícia Universidade Católica do Rio.
Nesse período, lembra o Estadão, foram apreendidas 228.813 armas de fogo em todo o Brasil.
Ainda no domingo, o Globo divulgou uma tese de doutorado segundo a qual, para cada 18 armas apreendidas, uma vida é salva.
De acordo com esse estudo, 80% dos homicídios ocorridos dentro das casas são cometidos por familiares ou pessoas póximas.
Também não é preciso muita concentração de neurônios ativos para concluir que, conforme comprova esse estudo, a presença de uma arma de fogo numa casa tem grande potencial para transformar uma altercação em tentativa de homicídio.
Seriam argumentos objetivos o suficiente para convencer os “idiotas da objetividade” que ainda repetem o bordão dos armamentistas americanos sobre a alegada inocência das armas.
No entanto, não se trata aqui de convencer quem por princípio ou covardia defende o porte de armas.
Trata-se de a imprensa alinhar o melhor conjunto de argumentos a serem levados aos responsáveis pelas políticas públicas, para tornar possível a reversão da desastrada decisão popular de 2005, que impediu o banimento das armas de fogo no Brasil.
Por outro lado, atenção para a injeção, aqui e ali, de notas sobre um suposto grupo islâmico por trás do ato insano do jovem assassino.
Enquanto não surgirem fatos concretos, qualquer especulação a respeito desse tema tem grande potencial para gerar injustiças e alimentar preconceitos.