Thursday, 28 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

>>Apostando no escuro
>>Nem livre, nem boa

Apostando no escuro

Da igreja, das religiões em geral, espera-se sempre que sejam conservadoras, uma vez que supostamente cuidam de preservar dogmas e tradições, contra o permanente assédio da modernidade.

Onde essas instituições se impõem, a sociedade estanca ou regride, como se pode observar nos países dominados pelo fanatismo dos aiatolás, ou, por exemplo, em Portugal sob o regime salazarista.

Onde as religiões atuam em equilíbrio com as outras forças sociais, a sociedade avança sem sustos.

É de se esperar, portanto, que também atuem na sociedade outras instituições que se colocam no lado oposto dessa gangorra, ou seja, aquelas que perscrutam a contemporaneidade e apontam os caminhos da evolução social.
 
Supostamente, a mídia se instala no campo oposto ao das religiões.

Pelo fato de se dirigir teoricamente a toda a diversidade ideológica que compõe a sociedade, a imprensa se tornou importante nos tempos modernos principalmente por respeitar esse pluralismo, ainda que seus controladores possuam sua própria visão de mundo.

Uma visão de mundo mais abrangente só pode ser considerada como tal quando reconhece o direito ao contraditório.

Para que se torne efetiva, a comunicação dessa visão precisa ser também abrangente, ampliadora de perspectivas e aberta a discutir o novo.
 
A imprensa brasileira parece ter abdicado dessa missão, nestes dias de verdadeira conflagração política.

Ao dar curso, estimular e de certa forma justificar um debate medieval sobre questões sociais importantes, a mídia faz uma aposta perigosa.

Questões como a regulamentação do aborto pertencem ao ramo da saúde pública, mas não podem avançar sem contemplar o campo da ética.

Mas nenhuma instituição tem o monopólio da ética, e por essa razão o debate precisa ser ampliado e retirado do ambiente restrito das crenças esotéricas.
 
A imprensa, uma das instituições, junto com a Universidade e outras, que teoricamente promovem a aproximação da sociedade com a contemporaneidade, deve, sim, abrigar esse e outros debates.

Mas limitar-se a dar repercussão a declarações radicais, na suposição de que a saturação do tema prejudica uma das partes que disputam o poder, é apostar no obscurantismo.

E quando faltam luzes a uma sociedade, a imprensa é uma das primeiras a perder.
 
Nem livre, nem boa
 
Ouça o comentário de Alberto Dines:
 
O ministro Franklin Martins, em declarações enviadas da Europa, levantou uma excelente questão ao afirmar que a imprensa brasileira ‘é livre, mas não é boa’. Com o poder de síntese de um experimentado jornalista, hoje convertido a contragosto em observador da mídia, o ministro conseguiu, com apenas seis palavras, compactar uma questão fundamental: a inexistência do clássico aparato censóreo é suficiente para colocar o selo de qualidade na imprensa de determinada sociedade? Dito de outra forma: se os censores trocaram os uniformes militares para vestir a toga, ou a batina ou o blazer corporativo isso é suficiente para garantir que a imprensa é livre? A dialética nos obriga a buscar o corolário: se a imprensa funciona livre de pressões ou constrangimentos, ipso facto é boa, porque é diversificada, plural. A grande verdade é que a nossa imprensa não é nem livre nem boa. Este é o grande mérito da provocação de Franklin Martins. Nossa imprensa foi duramente ameaçada pelo chefe do poder Executivo antes do primeiro turno e, aparentemente em represália, adotou algumas vezes, um comportamento libertino. Agora, no início da segunda volta, agarra-se histérica e farisaicamente à questão do aborto, esquecida do perigo de alimentar o fanatismo religioso, o clericalismo e o seu natural desaguadouro – o estado teocrático (qualquer que seja a religião que o controle). A liberdade e a qualidade da imprensa se sobrepõem e se associam quando um jornal como o centenário Estadão afasta uma colaboradora – a psicanalista Maria Rita Kehl – porque ousou divergir das suas premissas políticas. Se o jornal abre mão de um dos seus mais importantes atributos – o equilíbrio de conteúdo – deixa de respeitar a liberdade e os paradigmas que o qualificam. A grande verdade é que faltou ao ministro um terceiro elemento para compor a sua equação: quantidade. Nossa imprensa não é livre, não é boa e está sendo tragicamente reduzida.