Thursday, 28 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

>>Cobertura viciada
>>Leitura enviesada

Cobertura viciada


Desde 1998, todos os anos em que há eleição presidencial no Brasil, os grandes jornais anunciam ambiciosos projetos editoriais para a cobertura das campanhas.


Em 2006, até mesmo os diários do interior paulista, organizados em torno da Associação Paulista de Jornais, contrataram consultores e tentaram organizar a publicação em conjunto de notícias, entrevistas e análises, com a proposta de oferecer uma cobertura mais equilibrada da disputa.


Nenhuma dessas experiências resultou em um jornalismo mais equilibrado, mesmo porque, na própria escolha dos consultores e analistas predominavam as preferências dos controladores da imprensa.


Neste ano, renovam-se as promessas de proporcionar aos leitores uma cobertura distanciada e inovadora, mas o que se vê na prática ainda é o predomínio da vontade do dono.


A imprensa invariavelmente se associa aos candidatos, partidos e coligações que, segundo seu viés muito próprio, parecem mais conservadores.


Considere-se aqui a expressão conservador para aqueles que não representam risco aparente de mudança no sistema político e econômico.


Assim, até mesmo a candidata Marina Silva pode ser vista como conservadora, se a imprensa julgar que seu discurso ambientalista não é denso e abrangente o suficiente para alterar o status quo.


Tem esse sentido a ampla reportagem da revista Época desta semana, na qual a revista do grupo Globo tenta provar que o Estado brasileiro é controlado por sindicalistas.


O trabalho de pesquisa, recheado de opiniões de especialistas, procura demonstrar que o atual governo inchou a máquina administrativa e a entregou a seus aliados das centrais sindicais.


A reportagem tem um viés claramente ideológico, no sentido em que condena, sem maiores discussões, o que a revista considera como poder excessivo do Estado.


Mas não oferece comparações com outros governos, com relação ao orçamento ou mesmo ao Produto Interno Bruto ou ao tamanho da economia.


Soa como mais uma peça de campanha eleitoral do que como jornalismo. 


Leitura enviesada


Alberto Dines:


A entrevista do presidente Lula publicada ontem no importante diário espanhol, El País, repercutiu aqui da forma equivocada. Como sempre, aliás. Ontem mesmo, rádios e portais de notícias, interpretaram uma frase do presidente fora do seu contexto. Quando a entrevista se encaminhava para os resultados das próximas eleições Lula fez uma candente declaração anti-golpista: “Ganhe quem ganhar, ninguém fará um disparate. O povo quer seguir caminhando e não retroceder.”


Foi um pronunciamento sumamente importante, dirigido sobretudo aos aloprados de todos os lados e destinado a desmentir um texto publicado na revista “Movimentos”, órgão oficial do PT (e comentado um dia antes no El País) onde se afirma que “o fantasma do golpe militar ainda ronda o Brasil” (ver ‘Una revista del partido de Lula afirma que `el fantasma del golpe militar´ aún acecha a Brasil‘).


Ansiosos por esquentar o noticiário do frio domingo, os plantonistas não perceberam o alcance político e democrático da afirmação de Lula e optaram por valorizar provocadoramente a sentença seguinte: “Mas deixe-me dizer que não vejo a menor possibilidade que percamos as eleições.”


O texto do entrevistador, Juan Luís Cebrián, um dos fundadores do influente jornal espanhol e hoje um dos altos dirigentes da empresa que o edita, é extremamente sutil. Cita três vezes o famoso escudeiro de D. Quixote, o gozado Sancho Pança. Ao mencionar o senso comum de Lula, compara-o com o governador da ilha da Barataria da mesma obra de Cervantes e ainda diz que Lula assemelha-se mais à “loucura idealista” de D. Quixote.


Cebrian considera as críticas de Lula a FHC como “injustas” e faz rasgados elogios ao governo do antecessor. A entrevista teve o maior destaque (chamada na primeira página com foto e capa do caderno de “Domingo” onde estende-se por quatro páginas) e contrasta visivelmente com a técnica pouco criativa do pingue-pongue, geralmente adotada na imprensa brasileira.


Não é um conjunto de declarações mas o relato de um encontro com perguntas e respostas claramente indicadas combinadas às percepções do entrevistador. Convém lembrar que El País elegeu Lula como “Homem do Ano” em 2009 mas logo em seguida criticou-o duramente pela sua posição na questão dos direitos humanos em Cuba. Convém lembrar também que o jornal espanhol, além de disponível na rede, tem uma edição impressa no Brasil. Neste caso, a tentação de manipular fica mais complicada.