Ignorância e preconceito
Duas das mais lidas revistas semanais de informação, Veja e Época, trazem em suas capas reportagens vinculando o assassinato do cartunista Glauco e seu filho Raoni ao uso da ayahuasca, a beberagem utilizada por indígenas e caboclos da Amazônia Ocidental e que faz parte dos rituais do Santo Daime e outras seitas originadas na região.
Mas há uma diferença fundamental entre os títulos nas capas das duas revistas e também entre suas reportagens internas.
Época abre com a pergunta: “O daime provocou o crime?” – e observa que “a morte do cartunista Glauco reacende o debate sobre o uso da droga indígena ayahuasca em rituais religiosos”.
Veja parece não ter dúvidas: sob o título “O psicótico e o Daime”, questiona “até que ponto se justifica a tolerância com uma droga alucinógena usada em rituais de uma seita”.
Para a revista da Editora Abril, não há o que discutir: foi a ingestão da beberagem que levou o jovem Carlos Eduardo Sundfeld Nunes, o Cadu, a matar o cartunista da Folha de S.Paulo e seu filho de 25 anos, a tiros de pistola.
Já Época destaca que Cadu vinha apresentando sinais de distúrbios psíquicos nos últimos três anos, aponta indícios de que a família não atuou com o rigor necessário para levá-lo a tratamento e pondera fortemente que ele era usuário de drogas pesadas.
Além disso, a revista do grupo Globo ouviu representantes do Santo Daime no Acre, onde o uso ritualístico da ayahuasca nunca produziu episódios de violência e não costuma ser vinculado a atos antissociais.
Para Veja, porém, trata-se de uma droga poderosa que precisa ser proscrita, ou no mínimo fiscalizada pelo governo.
Entre as duas reportagens, nota-se o cuidado maior de Época em também verificar a responsabilidade de uma das vítimas.
Glauco, o cartunista da Folha, se considerava e era considerado pelos adeptos de seu culto como uma espécie de guru do Santo Daime.
Um dos responsáveis pela expansão do uso da ayahuasca para fora de seu ambiente nativo, ele mantinha e dirigia uma comunidade religiosa na região metropolitana de São Paulo, onde ministrava a bebida a fiéis e visitantes.
Sua tolerância com relação à maconha era conhecida.
Sua posição com relação às drogas pode ser observada em alguns de seus personagens, mas esse é tema proibido.
Afinal, no Brasil, não se pode fazer observações sobre atitudes, preferências ou comportamentos de artistas e jornalistas, sob pena de cair apedrejado sob a acusação de ataque à liberdade de expressão.
Diante do tema polêmico, pouco conhecido, como é a bebida usada por comunidades amazônicas, Época procura distribuir responsabilidades.
Veja embarca no preconceito e condena aquilo que desconhece.
Crime na sacristia
Alberto Dines:
– O circo está armado: a mídia popular, sobretudo a eletrônica, está excitadíssima com o início do julgamento, hoje em S. Paulo, do casal Nardoni/Jatobá acusado de ter jogado a filha/enteada, Izabella, do 6º andar onde moravam. O julgamento de um dos crimes mais horrendos já praticados no país vai estender-se ao longo de cinco dias. Porém, uma sucessão de crimes escabrosos, está há anos mantida longe dos holofotes. Ontem, finalmente, foi para a primeira página dos jornais do mundo inteiro quando o Papa Bento XVI pediu perdão pelas violências cometidas por sacerdotes pedófilos na Irlanda. Lamentou as “falhas graves” mas não falou em punir culpados.
Muito constrangidos, os jornalões brasileiros mencionaram a carta do papa sem grande destaque, na parte inferior da primeira página – como se tivessem combinado. Estão combinados. Mas a Irlanda é muito longe. Ninguém falou no caso de Arapiraca, em Alagoas, onde um monsenhor de 82 anos assediava sexualmente há oito anos um jovem ex-coroinha. Esta brutalidade foi desvendada numa cuidadosa reportagem do repórter Roberto Cabrini no programa “Conexão Repórter” do SBT no dia onze de Março, há onze dias.
Chocante, mas não houve qualquer repercussão, como se o resto da mídia, sobretudo os jornalões, tivessem feito um pacto de silêncio. Quem o quebrou foi a Veja desta semana. Esta onda de violências sexuais praticadas por sacerdotes não é nova, não matou ninguém, mas destrói anualmente centenas de vidas, liquida famílias, ofende os que acreditam em Deus – inclusive o sumo pontífice.
A questão da pedofília, versão criminosa da pederastia, não pode ficar confinada ao âmbito canônico ou teológico. Numa república secular, laica, como a nossa, sacerdotes não podem ficar acima da lei. Assédio a menores é crime. E todos os crimes devem ser investigados pela polícia e encaminhados ao Judiciário. Sem privilégios. Sem a proteção de pactos de silêncio.