O canto do cisne
O sociólogo e ex-presidente Fernando Henrique Cardoso volta à imprensa para explicar seu manifesto, que considera mal interpretado.
Nesta mesma quinta-feira, José Serra estréia coluna quinzenal no Estado de S.Paulo, na qual pretende fazer um exercício de fé “no poder da razão, das idéias, do conhecimento, na importância da persuasão”, conforme ele mesmo afirma no jornal.
Mas a julgar pelas reações de seus próprios correligionários, não bastou a FHC o talento de um “scholar” para que a mensagem política seja bem entendida. Ou aceita.
Em entrevista ao Estadão, o ex-presidente se diz surpreso com a repercussão de seu artigo, publicado nesta semana pela revista Interesse Nacional. E se queixa de ter sido mal interpretado.
Não deveria: no deserto de idéias em que se transformou o cenário político brasileiro neste início de século, sua manifestação tinha a vocação de uma tempestade de verão.
Produziu, de fato, muito barulho, mas a realidade do fisiologismo que caracteriza a vida partidária se impõe, e tudo volta ao pó.
Algumas reflexões tiradas do texto do sociólogo revelam que ele sabia do risco de fracasso ao tentar “sacudir” seus pares: “Dado o anacronismo das instituições político-partidárias, seria talvez pedir muito aos partidos que mergulhem na vida cotidiana e tenham ligações orgânicas com grupos que expressam as dificuldades e anseios do homem comum”, diz um dos trechos do seu documento.
A realidade responde com o lançamento do mais novo produto político, o PSD, agremiação de milionários, como destacou a Folha de S.Paulo, com a qual o prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, pretende se apresentar ao proscênio nacional.
Até mesmo nesse fato a manifestação de Fernando Henrique Cardoso representa um marco: ela pode ser vista como o canto do cisne de uma forma de fazer política que brotou durante a campanha pela redemocratização e começou a morrer com a pragmatismo das alianças entre desiguais.
O “baixo clero” do Congresso foi arregimentado pelo chamado “Centrão” na Constituinte de 1988 mas se consolidou com as alianças que confrontaram, de um lado o PT e do outro o PSDB, partidos que tinham todas as condições para formarem um bloco progressista.
Mas os egos falaram mais alto e hoje o lançamento do PSD de Gilberto “JK” Kassab simboliza o triunfo do pragmatismo irresponsável.
Política de resultados
Na contramão do manifesto de Fernando Henrique, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, prepara pacote social, ao estilo Lula, para buscar as graças do “povão”.
Diz a Folha que o governador paulista está se apropriando até mesmo da fórmula usada por Lula para monitorar a demanda de programas como o Bolsa Família.
Fernando Henrique insiste que foi ele o iniciador dos programas sociais de transferência de renda, que levaram ao fenômeno da mobilidade social no governo Lula.
Mas a imprensa registra as muitas manifestações de líderes da oposição contra o que era chamado de “bolsa-miséria” ou “bolsa-esmola”.
Menos esforçado intelectualmente, o pragmático Alckmin esquece o que foi dito e tenta repetir a receita de Lula.
Por que se pode afirmar que o manifesto de FHC é o canto do cisne de uma maneira de fazer política?
Porque, claramente, nenhum candidato a qualquer coisa vai perder tempo com reflexões que não sejam absolutamente produtivas, no jogo pelo poder.
A única estratégia vigente é parecer o que parece bem para o eleitorado.
Com pouco mais de cem dias de governo, ainda não se sabe o que será a gestão de Dilma Rousseff, que condições reais ela vai encontrar no Congresso, como a imprensa vai tratar suas propostas, mas até Kassab virou dilmista de carteirinha diante da popularidade da presidente.
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso ganhou da imprensa uma atenção que não esperava, mas não obteve a atenção que merecia.
Ainda que indiretamente, seu manifesto é uma declaração de falência da política com fundamento ideológico e uma tentativa de alertar seus pares para a necessidade de pensar estrategicamente.
Foi o primeiro movimento de um projeto que ele anuncia no Estadão: vai criar um portal chamado Observador Político, onde pretende reunir intelectuais do porte de Soninha Francine.
Mas a estratégia acabou. Agora é vale-tudo.
Pode-se discordar de tudo que ele diz, mas Fernando Henrique é uma voz que clama no deserto de idéias.
Ironicamente, porque ele é também um dos responsáveis pela política de resultados e alianças pragmáticas, desde sua campanha pela reeleição em 1998.