O falso brilho do mercado
O jornalismo diário tem essa característica: o leitor busca nas notícias de todos os dias os elementos para formar o painel de opinião com que deve construir ou consolidar sua visão de mundo.
Não a visão de mundo profunda, aquela que vai orientar a sua vida no longo prazo, mas aquela visão do horizonte mais próximo, que vai balizar sua ações mais imediatas.
Essas informações são essenciais, portanto, para a tomada de decisões que podem parecer simples, como o dilema entre reformar um carro velho e comprar um carro novo.
Ou simplesmente poupar o dinheiro para outras necessidades ou planos.
O noticiário dos jornais brasileiros sobre a crise econômica mais grave que já ocorreu no mundo não está ajudando o leitor a tomar essas decisões tão comezinhas.
Hoje, por exemplo, ao reproduzir quase sem filtros a euforia manifestada ontem pelas bolsas de valores, os jornais induzem as pessoas a esquecer por um momento que uma recessão bate às portas dos países mais ricos.
Esses períodos de alívio repentino podem se refletir na retomada do consumismo, reduzir a poupança coletiva e comprometer a capacidade de pagamento das famílias mais adiante.
Os telejornais de ontem e os diários de hoje foram à abertura do Salão do Automóvel em São Paulo e retratam esse momento de reflexão do brasileiro: comprar ou não um carro novo?
O que a imprensa nos conta é que existe uma multidão de potenciais compradores à espera de sinais de otimismo para se lançar ao consumo.
Depois, vêm os gastos quase inevitáveis com presentes e viagens de fim de ano, e o cenário ainda é sombrio.
Ao refletir diretamente o vai-e-vem do mercado de ações, a imprensa pode estar criando expectativas que não irão se concretizar.
Além disso, deixa no leitor a impressão de que os investidores em geral estão voltando a ganhar dinheiro, o que seria um bom sinal, quando na verdade apenas alguns estão realizando lucros.
Ninguém pode afirmar quanto dos resultados positivos das bolsas de valores – que animam os consumidores nos últimos dias – se deve justamente ao movimento de especuladores, que provocam quedas repentinas para comprar ações em baixa e depois induzem movimentos de alta ao voltar às compras.
O falso brilho do mercado parece cegar a imprensa.
Soprando bolhas
Quando o pior da crise parece ter passado, é o momento para a imprensa atentar para as armadilhas.
Alberto Dines:
– O grande desafio do jornalismo econômico começa agora. Passado o pânico, o que restou do mercado financeiro deve retomar a vocação de gangorra e retornar ao habitual despenca-dispara especulativo. Ontem o índice Bovespa fechou em alta pelo terceiro dia consecutivo, com um ganho de quase 19% na semana. Significa que o perigo passou? Ao contrário, o perigo é exatamente o mesmo, agravado pela perigosa aparência de normalidade.
A armadilha que ameaça a imprensa e o jornalismo econômico em particular esconde-se justamente sob estas fugazes bonanças. Eventuais melhorias nos pregões, índices ou taxas serão efêmeros. Já estamos num processo recessivo, embora em alguns países seus efeitos levem mais tempo para manifestar-se – caso do Brasil.
Depois de anos fomentando bolhas e surfando em miragens, a imprensa precisa aprender a ser veraz. Ser veraz significa ser infenso a espasmos de euforia.
Qualquer arroubo otimista será enganoso. É bom lembrar que enquanto muitos atores do processo econômico já bateram no peito e ensaiaram seus pedidos de desculpa, até o momento a imprensa ainda não teve a humildade para retomar sua vocação de serviço público e reconhecer sua nefasta contribuição na construção da irracionalidade. Não será fácil: a indústria jornalística vive principalmente das vibrações que emite em direção do consumismo, dos modismos e dos apelos para o prazer.
O jornal ou jornalista que assumir plenamente suas responsabilidades como radar do processo econômico será punido não apenas pelos anunciantes, mas por aqueles que apostam numa pronta reversão do quadro, inclusive os governos. Esta é a hora da verdade da imprensa. Se repetir a enganação anterior estará condenada à descartabilidade definitiva.