O humores da imprensa
As escolhas de manchetes sobre um mesmo tema costumam indicar o humor e as tendências de cada jornal.
E talvez tenhamos hoje um raro exemplo para observar como cada um dos três mais importantes diários do País enxerga os efeitos da crise financeira internacional na economia brasileira.
A notícia é a conta de transações correntes, que engloba todas as negociações do Brasil com outros países, como importações e exportações de bens e serviços, pagamento de juros no exterior e gastos com viagens.
A Folha de S.Paulo destaca na primeira página que ‘remessa de lucros atinge recorde e chega a 21 bilhões de dólares’.
A escolha do jornal paulista é pelo aspecto mais negativo da complexa conta de transações.
A Folha enfatiza o crescimento de 30% nas remessas de lucros de empresas multinacionais instaladas no País como um fato negativo, que, no entanto, pode ser visto como uma forma de as multinacionais usarem os bons resultados obtidos no Brasil para compensar perdas sofridas em outros países.
A escolha da Folha de S.Paulo tende a produzir pessimismo em seus leitores, mas não apresenta a verdade completa dos números.
O Estado de S.Paulo apresenta uma visão exatamente oposta.
‘Investimento estrangeiro aumenta, apesar da crise’, é a manchete do Estadão.
O noticiário interno observa que a crise internacional não foi suficiente para inibir investimentos produtivos no Brasil e que grandes aplicadores continuam apostando na economia brasileira com objetivos de longo prazo.
As perdas com remessas ao exterior, segundo o Estadão, se referem à fuga de especuladores.
Os leitores do Estadão são remetidos a uma visão de mais longo prazo e induzidos a pensar nos efeitos mais profundos da crise financeira internacional.
O Globo escolheu uma posição intermediária, afirmando em manchete que ‘Dinheiro externo é recorde mas crise já provoca fuga de capital’.
Internamente, o jornal carioca segue a mesma linha de raciocínio do Estadão, anotando que o Brasil perdeu capitais de curto prazo, investidos no mercado de títulos e ações, mas ganhou volume em termos de investimentos produtivos.
O problema é o toque de alarmismo contido na afirmação de que a crise ‘já provoca fuga de capital’.
Ora, o próprio Globo observa que as perdas se referem à remessa de lucros, o que é um movimento natural do mercado financeiro, e à busca de maior segurança por parte dos especuladores, fato que não aconteceu agora, mas nos primeiros momentos da crise internacional.
Por outro lado, é o único dos três grandes jornais e destacar os sinais de que o Brasil deve continuar se beneficiando, em 2008, com grandes volumes de investimentos estrangeiros diretos.
Quem perde
A leitura dos três principais jornais de hoje traz uma interessante oportunidade para os observadores, pelas diferentes visões que cada um deles apresenta para o mesmo fato.
O noticiário econômico dos diários já não produz, como há dez anos, grandes efeitos no mercado.
Os profissionais e empresários que decidem sobre os movimentos do capital contam, desde os anos 1990, com instrumentos mais ágeis e precisos de análise da economia e não necessitam esperar a edição dos jornais para tomar suas decisões.
Por outro lado, os pequenos investidores não costumam correr riscos e estão sempre aplicando em alternativas mais seguras.
Além disso, a internet se revela um meio muito mais adequado tanto para o acompanhamento dos indicadores econômicos como para a produção de análises mais dinâmicas e diversificadas.
Os próprios bancos e corretoras de investimentos oferecem noticiário sobre economia e negócios, através de boletins periódicos.
Alguns deles chegam a emitir mais de um boletim por dia.
Por esse motivo, não chega a ser grave, para a economia em geral, o descompasso como o que se observa nas edições de hoje dos jornais.
O prejuízo é dos jornais, que vêem crescer a concorrência pela atenção de seus leitores.
Com a necessidade de manter o público interessado nas manchetes, a tentação de produzir títulos chamativos e alarmistas pode superar os limites do bom senso.
Um dos grandes problemas é que, ao tratar os acontecimentos de longo prazo com um olhar imediatista, os diários também vão habituando o leitor a não levar muito em consideração aquilo que se publica no dia-a-dia.
No fim das contas, o ativo que mais se perde quando a imprensa se deixa levar pelos humores do mercado é a própria credibilidade da imprensa.