O Globo traz como manchete na edição de quinta-feira (11/6), sobre fotografia da ministra Carmen Lúcia Antunes Rocha, a frase da relatora que definiu a votação da questão sobre biografias não autorizadas no Supremo Tribunal Federal: “Cala a boca já morreu”.
O tema também abre as edições do Estado de S. Paulo e da Folha de S. Paulo.
O Estado anuncia: “Por unanimidade, Supremo acaba com censura às biografias”. A Folha proclama: “Por 9 a 0, STF libera biografias”. A sentença completa da ministra, decantada por toda a imprensa, se resumia no seguinte: “Cala a boca já morreu, é a Constituição do Brasil que garante”.
Certamente, a magistrada foi apanhar na infância a expressão com a qual pretendeu marcar seu protagonismo na história do STF, e que a escritora Ruth Rocha repassou às novas gerações no livro infantil intitulado O reizinho mandão. A frase original, que passa de boca em boca desde provavelmente os primeiros portugueses que aqui aportaram, diz de forma mais cabal: “Cala-boca já morreu; quem manda na minha boca sou seu”.
Esse enredo, produzido pela insistência do cantor Roberto Carlos, chamado de “rei” no folclore da canção popular, em proibir certas referências a sua mãe em uma biografia não autorizada, inspira sentimentos muito nobres sobre o direito à liberdade de expressão. Mas, como tudo que permeia a comunicação de massa, o noticiário sobre a votação da Suprema Corte esconde o entulho de farisaísmo que obscurece os debates sobre direitos humanos no Brasil.
Na mesma edição em que registram com solenidade a decisão judicial segundo a qual o direito à privacidade não pode restringir a liberdade de expressão, os jornais noticiam que a polícia legislativa, a serviço da “bancada da bala”, reprimiu o protesto de jovens que se manifestavam na Câmara dos Deputados contra o projeto que reduz a maioridade penal para 16 anos.
Paralelamente, em outro episódio no mesmo parlamento, deputados ligados a igrejas ditas evangélicas interromperam o rito processual para promover uma reza contra os direitos dos homossexuais.
Não há como não lembrar que fariseus e hipócritas são a mesma coisa.
Pornografia na Câmara
O que há de comum entre esses episódios é a dura constatação de que a imprensa, e talvez até mesmo a linguagem jornalística herdada da mídia impressa, não seja mais capaz de abranger a complexidade das questões apresentadas pela sociedade contemporânea.
Como defender a liberdade de expressão do autor de biografias sem fazer o mesmo com o deputado que acha razoável impor sua crença a todo o Poder Legislativo, ou, quem sabe, a todo o país?
Como não relacionar a truculência de agentes públicos contra estudantes que – muito saudavelmente – se deslocam até a Praça dos Três Poderes para manifestar sua discordância com relação a um projeto de lei que os afeta, ao clima de intolerância que grassa no país?
Não teria essa truculência a mesma natureza da violência latente nos modos como a polícia enxerga a juventude, principalmente aquela fração que vive nas comunidades mais pobres? Tudo isso não estaria relacionado ao fato de que sociedades conservadoras temem o “cala-boca já morreu” que desmoraliza o autoritarismo?
Vista de fora do arcabouço religioso, a cena do grupo de parlamentares, ladeando o presidente da Câmara, levantando cartazes contra manifestações de homossexuais, é mais do que patética: é um sinal de alerta para as instituições democráticas – principalmente o Supremo Tribunal Federal, com respeito ao princípio do Estado laico.
É curioso observar que as cenas protagonizadas por manifestantes durante a Parada Gay, chocantes para o senso comum, foram transformadas em pornografia por quem as reproduziu em cartazes e as exibiu diante das câmeras no plenário do Congresso.
Para concluir, e lembrando que esse contexto merece um debate mais amplo, convém citar outra notícia, segundo a qual estudantes da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo pretendem queimar um boneco representando Michel Foucault, em protesto contra decisão do conselho da instituição, que vetou a criação de uma cátedra dedicada à obra do filósofo francês. O ato lembra a fogueira da Inquisição.
O relicário de dogmas com que os parlamentares da chamada bancada evangélica tentam condicionar a contemporaneidade lembra o Malleus Maleficarum, manual oficial da Inquisição que a partir de 1495 fundamentou a violência da igreja católica contra mais de 100 mil mulheres, acusadas de copular com o demônio.
Uma curiosidade: vinte anos antes de morrer, Foucault havia cortejado uma tese perigosa – ele suspeitava que o processo civilizatório seria capaz de despertar certas loucuras adormecidas pela modernidade.