Indigestão numérica
O PIB brasileiro pode ter crescido pouco em dois dias, mas na mídia a sopa de números virou um rega-bofe indigesto. Em nenhum caso a imprensa se preocupa muito com a exatidão dessa numerália.
Crescimento da economia
Ontem, O Globo, em uma só página, conseguiu a proeza de dar sete diferentes previsões de crescimento do PIB. Somando todos os jornais, pode-se chegar a uma dúzia, uma quinzena.
No meio dessa fartura, alguém alertou, no noticiário desta quinta-feira, 2 de junho: o resultado dependerá em parte da saúde da economia internacional. Entre outras coisas.
O ministro Antonio Palocci só lembrou que em 2003 e em 2004 foram feitas previsões que os fatos frustraram.
Mas você, ouvinte, vai anotar num caderninho o nome de cada calculista e a previsão que ele passou à mídia, para conferir depois?
Carga tributária
Duas instituições cujos números costumam ser questionados voltaram a atacar. Uma é o Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário. Ganhou a manchete do Globo com sua estimativa de carga tributária no primeiro semestre.
A reportagem é calcada nas premissas do Instituto. Gente que critica, com razão, a ineficácia dos gastos públicos, é ouvida como se estivesse falando sobre os números específicos da reportagem. A Receita Federal, que deve entender um pouco do assunto, diz que não convém fazer cálculos trimestrais da carga tributária. Mas, no Globo, é rebatida por uma fonte anônima, cujas declarações são dadas entre aspas.
O número de pobres
Outra entidade a colaborar para a indigestão numérica do leitor é o Ipea, com seus tradicionais, e tradicionalmente equivocados, cálculos sobre o número de pobres.
Quem viu o filme Entreatos, documentário da campanha eleitoral de Lula em 2002, deve se lembrar de um comentário do hoje presidente: ‘Não sei de onde eles tiram esses números sobre a pobreza, mas o pessoal do partido me diz que está certo’. E Lula se resigna a repetir algo em que não acredita.
Dá para levar a sério um noticiário que estabelece Serra Leoa como referencial do Brasil em matéria de concentração de renda? E o Uzbequistão. E a República Dominicana? Onde foram parar?
Ah, antes que eu me esqueça: nos jornais de hoje há também fartos números sobre o desempenho das exportações.
Cuidado com a indigestão, ouvinte.
Herói ou traidor
Enquanto se discute se Mark Felt, o Garganta Profunda, foi herói ou traidor, o Alberto Dines estabelece um paralelo entre atitudes de servidores públicos no Brasil e nos Estados Unidos.
Dines:
− Onde é que se cruzam os casos Watergate e a propina dos Correios ? Eles não se cruzam. Podem conter vagas semelhanças mas são opostos em quase tudo. Watergate foi um caso clássico de jornalismo investigativo e o caso dos Correios é um caso clássico de denuncismo. Outra diferença situa-se no plano funcional: enquanto o funcionário público Mark Felt, ex-número dois do FBI, revoltava-se com o que via na policia federal americana e passava suas dicas a dois repórteres, não apareceu nos quadros dos Correios nenhum funcionário capaz de indignar-se com o que via e botar a boca no trombone. Ou na flauta.
Num episódio temos um servidor que rompe o sigilo funcional em nome dos seus compromissos morais. No outro episódio, o dos Correios, não aparece ninguém naquela gigantesca estrutura capaz de descobrir suas mazelas e torná-las públicas.
O problema brasileiro não é a corrupção endêmica mas a resignação renitente. O que vem dar no mesmo.
Outro pacto de silêncio
Entre dez e quinze profissionais da revista Vanity Fair, que deu o furo do Garganta Profunda, assinaram um compromisso de confidencialidade inédito na história da imprensa americana. Só assim foi possível conservar em segredo, durante um mês, uma edição que envolveu texto, imagem, diagramação, etc.
Deu certo. Mas que o compromisso é esquisito, lá isso é.