A natureza impõe sua pauta
Eram 470 os mortos na tragédia do Rio de Janeiro quando o Globo encerrou, na noite de quinta-feira, a edição que seria enviada para os outros estados na manhã seguinte.
A Folha de S.Paulo contou 508 vítimas fatais até as 22h50 de quinta e o Estado de S.Paulo registrou 510 mortes às 23h45.
Em quaisquer dos casos, os números, que ainda aumentavam na manhã de sexta-feira, já confirmavam que se tratava de um dos dez piores deslizamentos de terra registrados em todo o mundo desde o ano 1900.
Era também a segunda pior tragédia climática da história do Brasil.
Enquanto acompanham os trabalhos de resgate e a contagem das vítimas, os repórteres também resgatam os sinais de irresponsabilidade que emergem da lama.
Um deles: mais de trinta projetos com propostas para minimizar os efeitos das enchentes estão parados no Congresso Nacional.
Ao mesmo tempo, a bancada ruralista ainda tenta acelerar o projeto – com relatoria do deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP) – que reduz ainda mais as exigências para proteção das margens dos rios, dispensa pequenas e médias propriedades de manter reservas legais de floresta e torna fato consumado os desmatamentos ilegais.
Como lembra o colunista Marcos Sá Corrêa no Estadão, basta olhar as fotografias aéreas das avalanches em Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo para saber aonde vai levar o novo Código Florestal em gestação.
O deputado Rebelo e seus associados certamente estão neste momento elaborando notas de condolências destinadas às famílias das vítimas e provavelmente nem se deram conta de que a proposta que defendem, se vier a ser aprovada, vai agravar ainda mais a situação em muitas áreas de risco pelo Brasil afora.
Ainda timidamente, os jornais começam a compor o mosaico das irresponsabilidades que desaguam em tragédias.
As reportagens desta sexta-feira contam como a falta de comunicação entre autoridades impediu que muitos moradores da região serrana do Rio fossem alertados sobre a tempestade que chegava.
Ao contrário da Austrália, onde as comunicações oficiais têm permitido salvar vidas na região de Brisbane, afetada por inundações, por aqui a notícia só chega com a contagem dos cadáveres.
Cadeia burocrática
Como a imprensa poderia contribuir para alterar esse quadro de insensatez?
Certamente, atacando sem concessões o projeto criminoso que alivia as responsabilidades quanto à preservação ambiental.
Outra forma de contribuir é esclarecendo onde falham as políticas públicas: num dos debates da televisão sobre os acontecimentos no Rio, um comentarista da GloboNews criticou o fato de o governo federal anunciar verbas que nunca chegam às vítimas de catástrofes.
Foi preciso que outro comentarista, especializado, esclarecesse que as verbas só podem ser aplicadas mediante a apresentação de projetos por parte das autoridades municipais e estaduais.
Esclarecer como funciona e cobrar eficiência nessa cadeia burocrática seria uma atitude positiva da imprensa.
Outra atitude seria trocar a visão imediatista pelo olhar de longo prazo, ajudando a sociedade a exigir medidas preventivas e a se mobilizar contra iniciativas irresponsáveis como a da flexibilização do Código Florestal.
Também é preciso dar “nomes aos bois”, independentemente de eventuais simpatias políticas.
A Folha de S.Paulo informa, por exemplo, que o sistema de Defesa Civil fluminense recebeu do serviço de meteorologia um aviso sobre a possibilidade de chuvas na região serrana, mas por uma sucessão de falhas esse alerta não chegou a todos os municípios afetados.
A combinação das chuvas torrenciais com a fragilização dos morros pela ocupação desordenada e o desmatamento são as causas da grande extensão da tragédia, segundo os especialistas citados.
Desde que foi divulgado o mais preocupante relatório sobre mudanças climáticas, há quatro anos, sabe-se que é preciso atentar para a radicalização de alguns fenômenos meteorológicos.
A imprensa demorou a assumir como real a urgência climática.
Tragédias como a que assistimos nesta semana são uma forma brutal de a natureza impor sua pauta aos jornais.