Wednesday, 27 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

>>Sem entusiasmo
>>Terra de alguém

Sem entusiasmo

Os jornais de hoje não parecem nem um pouco animados com o novo projeto de reforma tributária que começa a tramitar no Congresso Nacional.

A proposta foi apresentada ontem pelo presidente da República a representantes do empresariado, mas a imprensa também não achou importante o raro acontecimento em que o governo presta contas a contribuintes antes de fechar um desses pacotes que mexem com o bolso de todo mundo.

O Estado de S.Paulo registra, na edição de hoje, que os empresários presentes à reunião gostaram do conjunto de medidas, que prevê, entre outras coisas, a substituição de quatro tributos federais pela criação do Imposto Sobre Valor Agregado.

Para o cidadão comum, a boa notícia é ainda uma intenção: paralelamente à reforma tributária, o governo anuncia a criação de novas faixas de cobrança do Imposto de Renda, que deverão beneficiar a classe média.

Aparentemente, os jornais não conseguiram registrar oposição significativa.

Apenas secretários da Fazenda de alguns Estados mantiveram um pé atrás, claramente por conta da redução progressiva do ICMS no Estado de origem da mercadoria, o que pode tornar sem sentido a atual guerra fiscal dissimulada.

Diante de uma notícia que não poderia ser apresentada de forma negativa, a reação dos jornais é curiosa: o Estadão dá o assunto na manchete, mas chamando atenção para a anunciada intenção do governo de tornar o Imposto de Renda mais leve. A Folha escondeu a notícia no pé da primeira página, referindo-se apenas ao Imposto de Renda, e o Globo ignorou completamente a reforma entre os temas que escolheu para a capa de hoje.

O leitor atento, aquele que não compra a sopa de letrinhas sem conferir o tempero, pode até desconfiar que a imprensa só gosta de notícia ruim.

Mas no caso da economia brasileira, está difícil ultimamente colocar alguma má notícia nas páginas dos jornais.

Observe-se, por exemplo, as edições de hoje:

O Brasil conseguiu combinar arrecadação recorde com a redução dos gastos públicos, o que reduziu a dívida em relação ao Produto Interno Bruto ao menor nível nos últimos dez anos. Deu na Folha.



A Bolsa de Valores do Brasil teve neste ano a maior valorização entre todas as bolsas do mundo, e se colocou bem à frente das bolsas de todos os países emergentes, inclusive a China.
Está no Globo.

União Européia volta a importar carne do Brasil. Saiu no Estadão.

Nenhum desses assuntos foi manchete.

Vai ver, aquele leitor desconfiado tem razão: parece que a imprensa não gosta de gol bonito. Prefere perna quebrada.

Terra de alguém

O Estado de S.Paulo, que tem tratado da Amazônia com mais freqüência e profundidade do que os outros jornais, publica hoje reportagem extensa sobre a questão legal das terras na região.

A uma primeira leitura, parece preocupante a constatação de que apenas 4% da Amazônia Legal tem documentação comprovada, enquanto 31% das terras são de posse privada irregular.

Esse território composto por documentos sem valor, posses precárias e outras inconsistências, equivale à soma das áreas de três países europeus: Alemanha, Espanha, França, Hungria e República Checa.

O Estadão chama atenção para o fato de que esse problema fundiário dificulta a ação do Estado, principalmente porque se torna imposível multar ou punir de alguma forma alguém que desmata ou queima a floresta numa área que não lhe pertence.

Seria mais ou menos como multar um carro sem saber quem é o dono.

Citando fontes especializadas, o jornal defende a titulação das terras para eliminar as fraudes, mas apresenta, lá no meio, uma entrevista com o presidente do Incra, Rolf Hackbart.

Ele diz o seguinte: ‘O Brasil até hoje ainda não fez a regularização fundiária, o que é terra pública e privada e qual é sua destinação. Não sabemos o quanto há de ilegalidade. Os números que se vê por aí são chute’.

Epa. Se tudo é chute, temos que recomeçar a ler a reportagem. Pode ter algum chute.

Ali pelo meio, o jornal diz que a maior parte da Amazônia é terra de ninguém.

Bom, se não é de ninguém, diria o leitor atento, é de todos, ou seja, é do Estado.

Basta que o governo declare que todas as áreas sem documentação privada regular sejam consideradas públicas.



Claro que não é assim tão simples, e não se pode esperar que uma edição de jornal esgote o tema imenso que é a Amazônia.

Mas o fato de o Estadão escolher o assunto para sua revista especial, promovendo exposição de fotografias e chamando a atenção dos leitores para o problema, já é muito mais do que a chamada grande imprensa fez até hoje pela floresta.