Torturando o leitor
Os jornais assumiram claramente um dos lados, no debate sobre o possível julgamento dos militares e agentes civis que cometeram o crime de torturar presos políticos durante o período da ditadura militar.
Na comparação entre as notícias disponíveis hoje, a imprensa continua fazendo confusão entre levar o caso à Justiça e promover a revisão da Lei de Anistia.
Embora o ministro da Justiça, Tarso Genro, nunca tenha proposto uma revisão da lei, mas a abertura de processos contra os acusados de tortura, os jornais seguem dando destaque maior para os personagens que defendem a validade plena da Lei de Anistia, que não chegou a ser colocada em questão.
Hoje, o Estado de S.Paulo coloca no alto da página a declaração do presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, que defendeu o fim da discussão sobre tortura no regime militar.
O argumento do ministro é que o julgamento produziria instabilidade política, mas os jornais não questionam seu posicionamento controverso.
Afinal, era de se perguntar se não caberia ao presidente da Suprema Corte defender, em princípio, que a Justiça se manifeste, em vez de varrer as demandas para baixo do tapete.
É preciso não esquecer que a questão foi levantada pela família do jornalista Luiz Merlino, que trabalhava no Estadão quando foi morto sob tortura.
A família de Merlino pede justiça há trinta anos, e o presidente do Supremo diz que o Judiciário não deve se manifestar.
E a imprensa – especificamente o Estadão – agasalha o argumento sem questioná-lo.
Para que não se diga que deu espaço apenas para um dos lados, o jornal também noticia que um grupo de cem juristas, entre os quais o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, assinou manifesto público em defesa do debate sobre o alcance da Lei de Anistia.
O texto do manifesto esclarece mais do que as reportagens dos jornais, ao observar que os termos da questão estão sendo deliberadamente deturpados.
A Folha de S.Paulo foi o único dos grandes jornais a destacar a manifestação dos juristas, deixando em segundo plano a declaração do ministro Gilmar Mendes.
O Globo ignorou completamente todas as informações controversas e o documento dos juristas e apostou numa página inteira em que o ministro Tarso Genro foi enquadrado pelo presidente da República e obrigado a voltar atrás, considerando encerrado o assunto.
É muito provável, mesmo, que o tema seja engavetado para sempre.
Curiosamente, por falta de interesse da imprensa.
Sujeira nas urnas
O Tribunal Superior Eleitoral adiou outra vez a decisão de mandar ou não forças federais para garantir o acesso de todos os candidatos a comunidades dominadas pelo crime organizado.
Segundo a imprensa, o TSE aposta na garantia do voto secreto como arma suficiente para que o próprio eleitor se oponha às pretensões dos criminosos que tentam emplacar nas urnas seus asseclas e associados.
Talvez seja acreditar demais no tirocínio das pessoas, ou subestimar demais a capacidade de pressão do crime organizado.
Se até mesmo para comprar um litro de leite muitos cidadãos dependem de autorização dos bandidos que dominam as favelas, uma campanha pela valorização do voto secreto pode parecer candura demais.
A imprensa parece ter perdido o interesse na questão dos candidatos com ficha suja depois da decisão do Supremo Tribunal Federal de que ninguém pode ser impedido de se candidatar enquanto não for condenado definitivamente.
Mas ainda há muito espaço para debates.
Alberto Dines:
– O Supremo Tribunal Federal decidiu que candidatos com problemas na justiça e chances de recorrer não podem ser embargados. Tem razão. Mas a Associação dos Magistrados considera que o princípio da presunção de inocência não vale para funções públicas. Também tem razão.
O que fazer? Convocar a imprensa para cumprir com o seu papel de defensora do interesse público. A questão dos candidatos com ‘ficha suja’ talvez não seja resolvida com facilidade.
Mas precisa ser discutida exaustivamente.
É o que fará hoje o Observatório da Imprensa. À meia-noite e dez na TV-Cultura. Ao vivo, às 22:40 na TV-Brasil. Participe.