Todos os dias, o mundo vive uma infinidade de acontecimentos que, a primeira vista, não têm qualquer relação com a ciência, mas somente uma ínfima fração deles alçam vôo e se tornam temas de debate público. Nos últimos tempos, as câmeras dos celulares e as redes sociais potencializaram o número desses casos que ganham proporções gigantescas e passam a dominar as conversas presenciais ou virtuais. É nesses diálogos — nas escolas, nas igrejas, nas universidades, nos clubes e em diversos outros locais de socialização, incluídos o Whatsapp, o Facebook, o Instagram e tantas outras plataformas digitais — que nós criamos nossas visões de mundo, nossos entendimentos sobre o justo, o correto e o injusto, o incorreto. Nesses embates precisamos urgentemente prestigiar a ciência, mesmo que hoje ela seja amplamente contraposta pela opinião rasteira, baixa, rasa da pseudociência.
Um primeiro exemplo é a morte de George Floyd, em Mineápolis, nos Estados Unidos, em maio deste ano. Floyd não foi a primeira e certamente não será a última vítima fatal de racismo. Mas qual seria a relação entre a ciência e uma morte brutal, perpetrada por um representante do Estado, sem que a vítima oferecesse qualquer risco de reação? Existem diversas associações possíveis. Seria impossível abordar todas, mas é fundamental pontuarmos algumas.
Em 25 de maio, dia da morte de Floyd, a pandemia de Covid-19 já havia tirado a vida de 96.909 pessoas nos Estados Unidos¹. Foi a ciência quem coletou esses dados e a partir deles podemos avaliar, questionar, relacionar e tentar encontrar respostas e saídas para o cenário de pandemia que nos encontramos. A comoção provocada pelo assassinato de Floyd iniciou uma onda de protestos que se alastrou por diversos países. Nos Estados Unidos, dezenas de entrevistados durante as manifestações afirmaram que tinham mais medo do sistema desigual que do coronavírus.
É a ciência quem mostra que o vírus não atinge indiscriminadamente as várias camadas sociais da população. Os determinantes sociais de saúde² mostram que os ambientes em que as pessoas nascem, vivem, aprendem, trabalham, brincam e envelhecem afetam uma ampla gama de riscos. Portanto, a desigualdade social — atenção médica, moradia, educação, alimentação — são responsáveis por que grupos de minorias raciais e étnicas sejam mais atingidos. Nos Estados Unidos, o número de casos por 10 mil habitantes mostra uma relação desproporcional. Brancos detêm 23 casos; negros, 62 e latinos, 73³. No Brasil, um estudo da PUC-Rio mostra que “as chances de morte de um paciente preto ou pardo analfabeto (76%) são 3,8 vezes maiores que um paciente branco com nível superior (19,6%)”⁴.
Floyd teve sua vida marcada pela desigualdade. Ronnie Lillard, um amigo do seu bairro da infância, em Houston, disse: “As pessoas ainda vivem em pequenas casas construídas na década de 1920. A pobreza é total… e sendo dessa área, é difícil escapar”⁵. A discriminação, que engloba o racismo, também é um dos fatores que pode provocar “estresse crônico e tóxico e molda fatores sociais e econômicos que colocam algumas pessoas de grupos raciais e étnicos minoritários em risco aumentado de Covid-19”⁶. O racismo é, portanto, além de atitude criminosa, um fator gerador de danos físicos e mentais que afeta o sistema imunológico de suas vítimas.
Apesar de não ter sido vítima da Covid-19, Floyd sofreu com o racismo ao longo de sua vida e no último ato dela. Ele pertencia a um dos grupos de minorias raciais e étnicas, que mais sofre com a pandemia e que é mais negligenciado na busca por uma cura. Os ensaios da vacina Covid-19 têm sido lentos para recrutar negros e latinos — e isso pode atrasar uma vacina⁷.
Mais recentemente, no Brasil, uma menina de 10 anos de idade engravidou após ser vítima de reiterados estupros desde os seus seis [anos] por parte do seu tio. É a ciência quem diz que o corpo de uma criança não está preparado para suportar uma gestação e que os riscos de um aborto são menores que os de um parto num organismo ainda não preparado. É também a ciência que oferece o único entendimento capaz de explicar as sequelas dos danos psicológicos causados pela violência brutal e constante que a garota sofreu ao longo de pouco menos da metade de sua breve existência. São esses os argumentos que precisam estar presentes nas discussões do dia a dia.
São essas evidências que devem se sobrepor à opinião vazia ou baseada em princípios falsos. É preciso continuar enfrentando o fanatismo religioso sem desmerecer a parte verdadeiramente altruísta e humana do discurso baseado em religião. No Brasil, existe uma parcela das igrejas e templos de várias determinações que fazem um trabalho que pretende genuinamente reduzir desigualdades. Mas foi uma parcela da classe religiosa e/ou política do país que obrigou a menina a mudar de estado, que pressionou a ela e à sua família para manter uma gestação de alto risco e fruto de um crime.
Nós, jornalistas científicos, professores, pesquisadores ou qualquer profissional – ou não – que aprecie o pensamento crítico e as evidências científicas precisamos encontrar novas formas de conectar a ciência e a população. Necessitamos partir das raízes, das conversas mais comezinhas e recheá-las de ciência, de fundamento, de análise. Precisamos enfrentar essas questões onde elas acontecem, nos ambientes físicos ou virtuais, modulando o discurso, pensando nos públicos aos quais nos dirigimos com estratégias comunicacionais claras.
Para isso, é fundamental a união de pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento como acontece na Rede ComCiência, na Marcha pela Ciência, nos Cientistas Engajados, entre outras tantas iniciativas em rede no Brasil e no mundo. É preciso organizar programas de ciência nos bairros, simplificar o entendimento de conceitos e promover uma cultura científica verdadeira, capilar e perene. Nessa busca, não podemos contar nem com a mídia corporativa nem, no caso do Brasil, com investimentos governamentais em ciência e tecnologia; provavelmente será ao contrário: virão mais cortes e contingenciamento para a área. Contemos ainda menos com o estímulo a uma comunicação da ciência inclusiva, fomentando a capacidade da população de compreender as etapas da produção científica e capaz de participar ativamente de seu debate.
Mas se construirmos esses espaços desde a base, usaremos a ciência a favor da sociedade. É preciso enfrentar esse desafio pelo menos com o mesmo afinco que move os obscurantistas. A prevalência da ciência sobre o obscurantismo preserva vidas, reduz desigualdades e exerce um papel fundamental para promover o valor de humanidade, não como um conjunto de características específicas à natureza humana (primeira definição), mas o sentimento de bondade, benevolência, em relação aos semelhantes, ou de compaixão, piedade, em relação aos desfavorecidos⁸.
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Notas
¹ World Health Organization. Disponível em: https://covid19.who.int/region/amro/country/us. Acesso em: 17 Ago. 2020
² Healthy People. Office of Disease Prevention and Health Promotion. Disponível em: https://www.healthypeople.gov/2020/topics-objectives/topic/social-determinants-of-health. Acesso em: 17 Ago. 2020
³ The Fullest Look Yet at the Racial Inequity of Coronavirus. The New York Times. Disponível em: https://www.nytimes.com/interactive/2020/07/05/us/coronavirus-latinos-african-americans-cdc-data.html. Acesso em: 17 Ago. 2020
⁴ Diferenças sociais: pretos e pardos morrem mais de COVID-19 do que brancos, segundo NT11 do NOIS. Centro Técnico Científico (CTC) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Disponível em: http://www.ctc.puc-rio.br/diferencas-sociais-confirmam-que-pretos-e-pardos-morrem-mais-de-covid-19-do-que-brancos-segundo-nt11-do-nois/. Acesso em: 17 Ago. 2020
⁵ George Floyd, the man whose death sparked US unrest. British Broadcasting Corporation (BBC News). Disponível em: https://www.bbc.com/news/world-us-canada-52871936. Acesso em: 17 Ago. 2020
⁶ Health Equity Considerations and Racial and Ethnic Minority Groups. Centers for Disease Control and Prevention. Disponível em: https://www.cdc.gov/coronavirus/2019-ncov/community/health-equity/race-ethnicity.html#fn1. Acesso em: 17 Ago. 2020
⁷ Covid-19 vaccine trials have been slow to recruit Black and Latino people — and that could delay a vaccine. Disponível em: https://edition.cnn.com/2020/08/16/health/covid-19-vaccine-trial-black-minority-recruitment/index.html. Acesso em: 17 Ago. 2020
⁸ “Humanidade”. Oxford Languages. Disponível em: https://www.google.com/search?q=humanidade&oq=humanidade&aqs=chrome..69i57j0l6j69i65.1007j0j7&sourceid=chrome&ie=UTF-8. Acesso em: 17 Ago. 2020
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Diogo Lopes de Oliveira é professor do curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Campina Grande, professor visitante do Departamento de Comunicação da Cornell University, nos Estados Unidos e membro da Rede Brasileira de Jornalistas e Comunicadores de Ciência (Rede ComCiência).