Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Esquizofrenia: uma história sobre a mídia e a identidade dessa doença

(Foto: Danie Franco/Unsplash)

Segundo a Organização Panamericana de Saúde (OPAS), cerca de 23 milhões de pessoas convivem com o diagnóstico de esquizofrenia ao redor do planeta. Esse transtorno pode se manifestar de formas diferentes em cada paciente, incluindo desde dificuldades no convívio social até mesmo alucinações e delírios graves. Apesar do grande número de pacientes afetados, da enorme diversidade de sintomas e de um número crescente de avanços nas pesquisas sobre o tema, esse distúrbio ainda é muitas vezes retratado sob um véu de estereótipos que vêm sendo perpetuados ao longo de séculos de exclusão e preconceito. Segundo Ary Gadelha, Coordenador Geral do Programa de Esquizofrenia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), o preconceito ainda é um fator determinante na vida dos pacientes com a doença. “O estigma é uma das principais barreiras para que as pessoas com esquizofrenia retomem uma vida produtiva, encontrem trabalho, estudo e novos amigos”, destaca. Para entender como essa imagem foi construída e propagada ao longo do tempo, é importante voltar os olhos para a história da medicina psiquiátrica e descobrir como os jornais, revistas e noticiários vêm divulgando informações sobre a esquizofrenia e as doenças mentais em diferentes épocas e contextos.

O primeiro registro histórico de uma condição com características semelhantes à esquizofrenia data de 1500 antes de Cristo (aC). No entanto, mais de 8 mil anos aC, os gregos e povos mesopotâmicos já traziam em sua cultura uma visão negativa sobre pessoas que apresentavam algum comportamento psicológico diferente do padrão para a época. Essas sociedades associavam as chamadas “perturbações mentais” a maldições divinas, possessões demoníacas e até mesmo à feitiçaria, o que depositava sobre os portadores o peso da vergonha e do perigo.

Distúrbios mentais como a esquizofrenia só passaram a ser classificados como doenças centenas de anos depois, sob a influência do discurso de pensadores e filósofos que viveram nos anos 500 aC. Essa nova classificação, contudo, não foi capaz de mudar a má fama dos pacientes que lutavam contra sintomas psiquiátricos. Na Europa, por exemplo, as famílias que abrigavam portadores de condições mentais ainda eram vistas como fontes de vergonha e humilhação, o que fazia com essas pessoas muitas vezes ficassem confinadas em porões ou mesmo abandonadas à própria sorte nas ruas.

A descrição médica específica para a esquizofrenia só veio em meados do século 19, quando o pesquisador Emil Krapelin, da Universidade da Estônia, relatou observações sobre a então chamada “demência prematura”. Nesse período, diversos asilos destinados a pessoas com doenças mentais estavam sendo construídos. Era nesses espaços que os pacientes diagnosticados com esquizofrenia e outros transtornos psiquiátricos viviam isolados por vários anos – por vezes, eram condenados a passar a vida toda alheios à convivência com a sociedade. O isolamento, até então, era tido como a melhor forma de garantir a segurança da sociedade, uma vez que o comportamento indesejado desses pacientes era tido como perigoso e vergonhoso.

Já durante o século XX, os avanços científicos e tecnológicos permitiram o desenvolvimento de medicamentos antipsicóticos com capacidade de controlar os sintomas da esquizofrenia. Os efeitos colaterais dessas drogas, que incluíam tremores intensos e sedação profunda, só começaram a ser superados na segunda metade do século passado com o surgimento de uma nova geração de medicamentos. Aliados à recém desenvolvida terapia cognitivo-comportamental, essas medicações trouxeram consigo a promessa de promover um tratamento mais humanizado aos pacientes esquizofrênicos.

Século XX: a mídia como reflexo das crenças populares

Ao mesmo tempo em que diversas pesquisas buscavam desenvolver tratamentos mais humanizados com a capacidade de retornar os pacientes psiquiátricos ao convívio com a sociedade, o interesse dos veículos de comunicação pela esquizofrenia parecia estar centrado em um viés estereotipado e obscuro. Essa tendência foi observada em um estudo realizado na década de 1980, onde os pesquisadores David Day e Stewart Page, da Universidade de Windsor, no Canadá, analisaram 103 notícias sobre a saúde mental publicadas no país entre os anos de 1977 e 1984. A pesquisa revelou que havia um interesse especial por parte da mídia pela esquizofrenia, uma vez que essa doença era mencionada em 77% dos artigos examinados. O contraponto é que grande parte dessas matérias abordava somente aspectos negativos relacionados ao quadro, destacando que os pacientes poderiam ter traços “perigosos” de personalidade – como dependência, imprevisibilidade, ansiedade e dificuldade de conviver na sociedade.

Um cenário semelhante foi encontrado pelos autores Otto Wahl, Amy Wood e Renee Richards em publicações americanas da década de 1990. Por meio de uma pesquisa realizada na Universidade George Mason, nos Estados Unidos, os autores compararam 600 notícias publicadas entre 1989 e 1999 sobre o mesmo tema e constataram que a esquizofrenia também foi um assunto de destaque nesse período. A doença apareceu em 16% das notícias veiculadas em 1989 e em 24% das notícias veiculadas em 1999, mostrando um aumento do interesse pelo assunto ao longo da década. Porém, a maioria desses artigos e dos demais relacionados à saúde mental ainda focavam na dita periculosidade dos pacientes psiquiátricos, narrando casos criminais cometidos por pessoas supostamente diagnosticadas com esses quadros.

O estudo americano identificou ainda outro agravante na divulgação de notícias sobre saúde mental nesses veículos: poucos artigos nomeavam os distúrbios individualmente, bem como seus sintomas ou características específicas. Dessa forma, acabavam colocando todos os pacientes psiquiátricos em uma mesma categoria, sem considerar as individualidades de cada doença, dificultando a identificação do quadro pelos pacientes, familiares ou pessoas do convívio e somente colaborando para um imaginário estereotipado envolvendo esses distúrbios.

Apesar de essas pesquisas revelarem uma ligação forte entre a esquizofrenia e termos como “violência”, “perigo”, “crime” e “imprevisibilidade” na divulgação midiática do século XX, Ary Gadelha explica que a maior parte das pessoas com esquizofrenia não é violenta. “Em alguns momentos, podem ficar agressivas se sentirem que estão sendo ameaçadas. Mas, quando agudamente sintomáticas, tendem a ficar mais retraídas e se proteger”, relata o psiquiatra.

Século XXI: o reflexo do passado se perpetua

Na contramão do longo estigma perpetuado por séculos, os tratamentos atuais para a doença já são capazes de permitir a inserção do paciente na sociedade. O acompanhamento adequado pode reduzir a duração dos sintomas e manter a pessoa livre de crises psicóticas por períodos cada vez mais longos. Mesmo que ainda não haja uma cura para a esquizofrenia, segundo dados do portal Living with Schizophrenia, que se dedica a publicar experiências de pessoas que convivem com a esquizofrenia, cerca de 25% das pessoas que experimentam um episódio dessa doença se recuperam totalmente e não têm mais problemas em sua vida. Outros 50% melhoram significativamente com a medicação, mas podem sofrer sintomas residuais esporadicamente.

Mesmo assim, as sequelas sociais do estereótipo alimentado sobre a esquizofrenia se perpetuam até os dias de hoje. Mais de três décadas depois do estudo de Otto Wahl, em 2012, pesquisadores do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo lideraram um estudo buscando compreender como veículos brasileiros de grande circulação no século XXI aborda a esquizofrenia, seja como termo ou como a doença propriamente dita. O estudo revelou que a mídia atual ainda traz à tona os estereótipos criados nas décadas anteriores, relacionando muitas vezes a doença a termos como “crime”, “violência” e “frieza”. A generalidade notada nas publicações americanas da década de 90 também parece estar presente nos textos analisados pela equipe. “Há a tendência à generalização de casos isolados”, postula o artigo.

Outro ponto destacado pela pesquisa diz respeito à recente apropriação do termo “esquizofrenia” como uma metáfora depreciativa, frequentemente utilizada fora do contexto da doença como sinônimo de “loucura”, “bagunça” ou ‘“inconstância” em construções como a frase “existe uma certa esquizofrenia na administração municipal”, que foi publicada no jornal Folha de São Paulo em junho de 2011.

Esses dados revelam que, ainda que anos de pesquisas e avanços científicos tenham possibilitado a convivência mais amena dos pacientes com os sintomas da esquizofrenia, o peso dos estereótipos históricos ainda permanece sendo depositado sobre a identidade dessas pessoas. “Não é que busquemos esconder o lado difícil de ter esquizofrenia, mas é que as pessoas com esquizofrenia são muito mais do que a sua doença e podem ser fantásticas”, conta Ary Gadelha. A desconstrução desse estigma passa por inúmeros fatores sociais, entre os quais a reformulação da forma com que a mídia retrata essa doença pode ser um ponto decisivo. “Ter uma perspectiva diferente é a única maneira de reduzir o estigma e dar mais visibilidade e oportunidade para as pessoas com esquizofrenia”, explica Gadelha. “Parece que a imprensa já tem uma pauta definida e não se abre para apresentar outras perspetivas”, continua. Além de prezar pela divulgação de materiais atualizados e cientificamente precisos e abrir mão do uso de termos médicos como expressões preconceituosas, é preciso dar voz ao portador de esquizofrenia, favorecendo o acesso da população a informações reais e reduzindo o preconceito generalizado.

Notas

O texto foi escrito a convite da Rede Brasileira de Jornalistas e Comunicadores de Ciência (RedeComCiência) e é resultado da disciplina de História da Comunicação da Ciência, ministrada pela doutora Germana Barata.

A RedeComCiência é uma associação apartidária e sem fins lucrativos, criada em fevereiro de 2018, para reunir profissionais interessados em discutir, amplificar, viabilizar e melhorar o jornalismo e a comunicação de ciência no Brasil. Ela é formada por profissionais das áreas da comunicação, divulgadores científicos e cientistas de todo o Brasil.

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Bianca Bosso é aluna do curso de Pós-Graduação lato sensu em Jornalismo Científico Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Atualmente, é orientada pelo doutor Daniel Martins-de-Souza no projeto “Da compreensão básica a biomarcadores clínicos para a esquizofrenia” (MídiaCiência – Fapesp).