Quando penso nos meus anos de medicina, costumo dizer que sempre tive uma carreira agitada. Ao longo das décadas, lidei com muitos surtos, epidemias e pandemias. A primeira delas foi logo na minha residência em infectologia, lá no início dos anos 1980: a Aids apareceu cercada de desafios e perguntas para as quais nós não tínhamos respostas. Sem remédios e vacinas, víamos os pacientes soropositivos morrerem na nossa frente, sem que pudéssemos fazer qualquer coisa. Mais para frente, tivemos que enfrentar a dengue, a zika, o chikungunya e a febre amarela. Em 2009, o H1N1, vírus influenza que deixou o mundo em estado de alerta. Agora, em 2020, o inimigo da vez é o Sars-CoV-2, o Coronavírus, responsável pela pandemia atual.
Ao longo dessa trajetória, além de meu trabalho de médico, professor e pesquisador, sempre tive um contato frequente com os jornalistas, que me procuram para esclarecer dúvidas a respeito de uma ou outra doença infecciosa. Percebo, inclusive, uma mudança importante na imprensa brasileira de 1980 para cá: houve um considerável amadurecimento de repórteres e editores.
No início, achava muito difícil estabelecer um diálogo com os profissionais da mídia. Atualmente, é muito raro participar de uma entrevista com um jornalista que não sabe nada a respeito do assunto sobre o qual está escrevendo. A especialização tornou as perguntas mais certeiras e inteligentes, o que facilita em muito o nosso trabalho, como entrevistados.
Isso, claro, é uma mudança que não ocorreu só com jornais, revistas, sites, rádios e televisões (e seus profissionais). Entre uma coletiva e outra, conforme fui ganhando experiência, aprendi como falar certos termos ou ser mais claro em uma explicação. Para cada pergunta que recebo, tento sempre encontrar as melhores palavras para que o repórter saia daquela conversa com uma compreensão completa.
Nesse contexto, é preciso tomar cuidado com alguns conceitos e sempre explicar termos e jargões típicos de nossa área. É importante que os jornalistas sejam informados, por exemplo, sobre a diferença entre prevalência e incidência. Esse relacionamento com a imprensa, aliás, não é muito diferente do que fazemos com os alunos de medicina que estão nos primeiros anos do curso. Eles também estão ali para aprender os conceitos básicos, que serão extremamente valiosos dali para frente.
Aprender o básico
Para os jornalistas que estão lendo este texto e querem entender melhor o mundo da ciência e da medicina, a principal sugestão que posso dar é, certamente, ler muito sobre o tema. Em primeiro lugar, alguns textos que ajudem a entender os conceitos básicos da pesquisa ou como ler um artigo científico e compreender a mensagem. Com isso em mente, você fica melhor habilitado para ler as grandes fontes de novidades, que são os periódicos especializados — é o caso de The Lancet, New England Journal of Medicine, Nature, Science, entre outros.
Com essa formação básica, você mesmo será capaz de destrinchar o estudo recém-publicado para entender se ele tem potencial de virar uma reportagem. Na sequência, conseguirá fazer as perguntas necessárias para os especialistas naquela área, tendo em vista as aplicações práticas daquela informação na vida das pessoas, os erros de metodologia daquele artigo, suas limitações e possíveis comparações com o conhecimento que já existia a respeito daquele tópico.
Fontes de pautas
Outra dica que considero valiosa é restringir seu campo de busca aos jornais científicos com melhor reputação. Você pode conferir essa informação por meio de alguns sites que medem o fator de impacto de cada um desses veículos especializados. Isso é importantíssimo para você focar a sua busca de novas pautas.
Vamos pegar o atual Coronavírus como exemplo: se nós escrevermos no PubMed, uma biblioteca de pesquisas mantida pelo governo dos Estados Unidos, o termo “Covid-19”, teremos mais de 3 mil resultados diferentes. Quem consegue ler tudo isso? Agora, se você der preferência aos jornais mais reputados (como aqueles que citei mais acima), a chance do conteúdo ser confiável é bem maior.
Que fique claro: isso não significa que esses grandes periódicos não erram. Durante a pandemia, aliás, eles cometeram grandes deslizes. Mas a chance de serem publicadas informações infundadas ou com erros nesses locais é bem menor, pois o nível de exigência para que os artigos sejam aceitos ali é muito alto.
Variedade de vozes
Agora que você já entendeu a importância de entender os conceitos básicos da ciência e sabe diferenciar as publicações de impacto, considero vital que os jornalistas sempre procurem entrevistar diversas fontes. Assim, é possível ter um posicionamento amplo sobre aquela questão, o que dá mais segurança sobre a veracidade da informação ou seus desdobramentos na vida real de cada um de nós. A pluralidade de vozes, confrontadas e apresentadas em uma reportagem, mostra a riqueza sobre determinado assunto e ajuda a mostrar como a ciência evolui por meio das críticas e da replicação dos modelos de pesquisa.
Sobre essa questão de ouvir vários especialistas, vale frisar que o fato de o indivíduo ser formado em determinada área não significa que ele está apto a falar sobre tudo — por mais que ele fale bem ou seja comunicativo. Durante essa pandemia, vi muitas matérias cujos entrevistados eram oncologistas, alergistas ou especialistas em outras áreas.
Quando falamos de uma doença viral nova com centenas de milhares de casos, como é o caso da Covid-19, os infectologistas, os virologistas e os epidemiologistas geralmente devem ser as principais fontes. Da mesma forma que se deve conversar com oncologistas quando a pauta é o câncer ou com astrônomos quando o tema gira em torno de buracos negros.
A comunicação como ponto-chave
Claro que toda essa questão com o Coronavírus representou uma série de desafios para todos nós. Sem sombra de dúvida, a forma ideal de comunicação foi um dos principais deles. Tivemos que enfrentar e desmentir notícias falsas relativas às máscaras, a remédios e às vacinas.
Ao mesmo tempo, precisamos também segurar os ânimos sobre a chegada dos imunizantes e reforçar mensagens sobre a manutenção do isolamento social (quando possível) e as medidas básicas de proteção e higiene. Isso tudo depende, claro, da evidência científica. Mas, acima de tudo, é essencial que essas informações cheguem à população de uma maneira clara e objetiva.
Feitas as devidas ressalvas e reflexões, gostaria de ressaltar que o trabalho da imprensa está sendo de extrema importância nesse momento que vivemos. Reportagens sérias e bem apuradas ajudaram a modificar os hábitos das pessoas e permitiram que muitas delas tivessem contato com as recomendações validadas cientificamente e chanceladas por instituições como a Organização Mundial da Saúde (OMS). Que esse avanço no jornalismo perdure, mesmo quando a pandemia deixar de ser manchete.
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Celso Granato é infectologista, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e diretor Clínico do Grupo Fleury. Ele escreveu essa coluna a convite da RedeComCiência por sua atuação na linha de frente na pandemia da Covid-19.