A disputa de poder entre Elon Musk, dono do X (ex-Twitter), e Alexandre de Moraes, ministro do STF, aumentou como nunca a temperatura das discussões sobre o papel das grandes empresas de tecnologia de comunicação na sociedade atual.
Há tempos o poder das chamadas Big Techs vem sendo debatido no meio acadêmico e na esfera pública como um perigo para as democracias. O caso mais notório foi o da participação indireta do Facebook na eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, em 2016. Durante a corrida eleitoral, a Cambridge Analytica utilizou dados de 70 milhões de usuários do Facebook naquele país para favorecer Trump.
Mas o caso Musk-Moraes eleva o problema para um novo patamar. Até então, plataformas como X/Twitter e Facebook eram vistas como relativamente “neutras”, nas quais o engajamento a favor deste ou daquele tema dependia mais da participação dos próprios usuários do que das plataformas em si. Isso apesar da participação nas campanhas massivas contra projetos de regulação do setor, como foi o caso do PL 2630/20, e de se mostrarem omissas ou tardias na moderação de conteúdos de ódio ou de fake news.
Ainda havia alguma ilusão de que os algoritmos podiam ser domesticados, dependendo da forma como as postagens eram feitas e de alguns parâmetros – autor, horário, palavras-chave, curtidas, compartilhamento etc. Embora a participação de robôs, notadamente na eleição de Jair Bolsonaro em 2018, tenha tido papel importante, pairava sobre as Big Techs o benefício da dúvida.
Teoricamente, cabia aos usuários a iniciativa de denunciar discursos de ódio, às plataformas a rápida identificação desses discursos, bem como a proteção dos dados, e ao poder público as ações para que certas postagens fossem barradas, seja pela exclusão do conteúdo publicado ou pelo banimento do autor. Mas Elon Musk decidiu participar ativamente do jogo e tudo mudou.
Não queremos comentar aqui os detalhes da disputa de poder entre Musk e Moraes, pois eles estão na cobertura da mídia. Nosso foco é o movimento do dono do X, que muda o status da plataforma para transformá-la numa espécie de panfleto político digital.
Porém, não são centenas de panfletos impressos e distribuídos a mão, como se fazia antigamente, mas sim uma poderosa mídia com meio bilhão de usuários, que não apenas tem enorme poder de massificação, mas também de calar o outro lado. É isso que muda o jogo. Nas mãos de Musk, agora sem máscara, o X tornou-se uma ferramenta de comunicação que endossa, reforça e impõe a narrativa da extrema direita no Brasil.
Elon Musk se notabilizou como empresário visionário ao transformar a Tesla na montadora de carros mais valorizada do mundo. Com uma estratégia inteligente, que considerou inicialmente a infraestrutura necessária para o carregamento dos carros elétricos, o empresário sul-africano apostou todas as fichas na Tesla e, de alguma forma, obrigou as montadoras tradicionais a correrem atrás dela, em busca de uma mobilidade mais limpa.
Num ambiente de superaquecimento global, os carros da Tesla não emitem CO2 durante a utilização por serem totalmente elétricos. O dano colateral causado pelas baterias de íons de lítio é uma discussão que ainda está sendo feita, mas é menor do que o dano provocado pelos carros com motor a combustão interna.
Musk também deu passos importantes em outras áreas, como a de satélites de comunicação, com sua empresa Starlink, e os voos espaciais com foguetes que retornam e pousam em pé, com a Space-X. Faltava, entretanto, uma empresa de comunicação global que fechasse o ciclo.
O Twitter era a plataforma perfeita para os planos de Elon Musk. Embora não fosse tão popular como o Facebook, o Instagram e o TikTok, o Twitter era a rede social preferida dos intelectuais, muito usada por políticos e por jornalistas, portanto com enorme capacidade de formar opinião. Trump e Bolsonaro, em seus mandatos, não precisavam convocar entrevistas coletivas ou rede nacional para se comunicar com frequência – diziam o que queriam em mensagens de até 280 caracteres no Twitter.
O Twitter, aliás, era considerada a rede social mais engajada na detecção e banimento dos discursos de ódio e de outros crimes realizados a partir das plataformas digitais. Tanto que Trump foi banido do Twitter, em 2021, por incitar a violência no episódio de invasão do Capitólio. Musk pagou 44 bilhões de dólares pelo Twitter e já chegou cortando as cabeças dos líderes. Tudo seria mudado.
Em 2022, Musk fez uma enquete em seu Twitter e, pelo resultado (51,8% contra 48,2%), decidiu reativar a conta de Trump. E tuitou: “O povo falou. Trump será reintegrado. A voz do povo é a voz de Deus”, escreveu, em latim: “Vox Populi, Vox Dei”. O que ele não disse é que tem o controle do algoritmo a seu dispor.
Uma de suas primeiras providências foi desativar todas as contas verificadas, marcadas com o famoso selinho azul, que servia para diferenciar veículos de informação reais, como The New York Times e Folha de S. Paulo, por exemplo, de perfis que pudessem se passar por eles. O selo azul de “perfil verificado” também era distribuído para jornalistas, artistas e outras pessoas que poderiam eventualmente ser vítimas de falsificação no uso de seus nomes. Este selo era gratuito.
Musk decretou o fim do selo gratuito e começou a cobrar por seu uso. Portanto, não apenas utilizava a informação dos “criadores de conteúdo”, além de minerar seus dados, mas também passou a receber por eles! Uma situação que antes seria considerada absurda, pois a grande massa de usuários das redes sociais está de fato trabalhando de graça para as plataformas.
O dono da Tesla, da Starlink, da Space-X e do Twitter provou mais uma vez que era um “gênio” do capitalismo, pois muitos jornalistas toparam pagar pelo selo, além de pessoas anônimas que passaram a ser “verificadas”. Em troca ganharam mais espaço para suas postagens (não mais limitadas em 280 caracteres) e, mais importante, passaram a contar com uma providencial ajuda do algoritmo. Contas verificadas têm mais visualizações e seus donos ganham mais relevância na mídia digital.
Não demorou para que Mark Zuckerberg adotasse a mesma ideia para o Facebook e o Instagram. Elon Musk ainda mudou o nome da empresa, de Twitter para X, o que também foi um choque para os usuários, que ficaram órfãos do simpático passarinho azul. Mas tudo estava se acomodando até que o dono do X decidiu levantar a bandeira da extrema-direita brasileira e passou a chamar o ministro Alexandre de Moraes de “ditador do Brasil”.
Não uma ou duas vezes, mas várias. Por incrível que pareça, num primeiro momento o que Musk fez, ao compartilhar e comentar uma postagem de Moraes no X, era apenas o normal da plataforma, que sempre teve fortes embates, mesmo quando se chamava Twitter. A diferença – gritante e perigosa – é que, no caso, um dos dois era simplesmente o dono do X. E que ameaçava não cumprir as decisões judiciais de um país soberano.
Portanto, Musk mudou o status do X. Ele deixou de ser um espaço de informação ligeira e de debates e passou a ser o “Pravda” particular do dono da plataforma, que tem interesse na extração de lítio na Argentina (daí sua ótima relação com Javier Milei) e já espera que Trump, se voltar à Presidência dos Estados Unidos, coloque barreiras comerciais para a entrada de carros elétricos chineses no mercado estadunidense, especialmente os da BYD.
Atualmente, a Tesla ocupa o 14º lugar no ranking global de vendas e tem o carro mais vendido do mundo, o Model Y. Mas a BYD já passou para o 9º lugar, está levantando fábricas de carros elétricos no Brasil e no México, e pretende entrar em todos os mercados com veículos elétricos acessíveis, o que não é o caso dos automóveis da Tesla, todos caríssimos.
Musk diz em suas bravatas contra Moraes (e, por extensão, contra o Poder Judiciário do Brasil) que luta pela “liberdade”, palavra esculachada pela extrema-direita no mundo inteiro, de tanto que seu significado foi deturpado. Mas, curiosamente, sobre a liberdade de expressão na China, onde tem uma fábrica da Tesla, e onde o X é proibido, Musk nunca disse absolutamente nada.
Um recente estudo do Instituto Kiel para a Economia Mundial, da Alemanha, revela que a Tesla de Elon Musk recebeu auxílio financeiro direto de US$ 426 milhões do governo chinês pelos veículos produzidos em sua fábrica de Xangai. Segundo o site Bloomberg, que publicou a lista, o valor repassado à Tesla só perdeu para o da chinesa BYD, que foi de US$ 3,7 bilhões entre 2018 e 2022.
Com a polêmica entre o X e a Justiça brasileira, muitos usuários abandonaram a plataforma e correram para duas parecidas: o Threads e o Bluesky. O Threads pertence a Zuckerberg e já há algum tempo abriu contas automaticamente para os usuários do Instagram, tanto que os perfis são vinculados. Poucos usavam o Threads, que perdeu 70% de usuários após o impacto inicial; agora volta a ser uma das opções de quem se sentiu traído pela postura do dono do X.
O Bluesky pertence a Jack Dorsey, que foi um dos criadores do Twitter e CEO da empresa até o ano passado. Vários perfis da esquerda brasileira migraram rapidamente para o Bluesky, que tem a promessa de ser mais seguro e transparente para os usuários.
O Bluesky utiliza a tecnologia blockchain, que também é usada em criptomoedas. “Estamos construindo o AT Protocol, uma nova base para redes sociais que gera aos criadores independência de plataformas, aos desenvolvedores a liberdade de construir e aos usuários uma escolha em sua experiência”, afirma o site oficial da Bluesky.
É possível que Musk tenha dado um tiro no pé, jogando milhões de usuários do X no colo de Zuckerberg (Threads) e de Dorsey (Bluesky)? Sob o ponto de vista do X como negócio de comunicação, sim. Mas já está claro que o X não é mais um espaço de debate isento e se tornou apenas um instrumento para imposição de uma narrativa política particular, a de seu dono, cuja briga pela “liberdade” é quase uma moeda de troca.
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Sergio Robinson Quintanilha é doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo e participa do grupo de pesquisa Jornalismo, Direito e Liberdade (JDL), vinculado à Escola de Comunicações e Artes da USP e ao Instituto de Estudos Avançados da USP.