Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A crise do jornalismo

(Forto: M. por Pixabay)

Do latim crĭsis,is, no sentido de “momento de decisão, de mudança súbita, crise”; e do grego krísis,eōs, como “ação ou faculdade de distinguir, decisão”; e ainda krínō na acepção de “separar, decidir, julgar”, a palavra crise chegou ao português no século XVIII, segundo o dicionário Houaiss. Trazida, com grande probabilidade, pelo vocabulário médico que a equiparava a um “momento decisivo na doença”. A crise do jornalismo, assim como a crise da emergência climática, a crise do neoliberalismo e a crise das democracias colapsadas e da ascensão do autoritarismo em diversos países, reverbera em todo o planeta. Porque, quando o jornalismo está em crise – de credibilidade, de financiamento, de representatividade –, uma proporção significativa de pessoas sugere que as organizações jornalísticas poderiam fazer muito mais para simplificar a linguagem e explicar ou contextualizar melhor matérias complexas.

A crise do jornalismo é global e plural, abarcando vários aspectos simultâneos e entrelaçados: falência de empresas de comunicação, diminuição nas vagas de emprego, baixos salários, pouca infraestrutura nas redações, queda na produção de grandes reportagens, escassez de furos jornalísticos e diminuição do número de leitores, agora já muito acostumados à disponibilidade gratuita e abundante de informações e opiniões efêmeras na internet. Quem assistiu ao documentário O dilema das redes (The social dilemma, 2020), dirigido por Jeff Orlowski, entende como acabamos reféns de nosso anseio de agradar. Dentre os inúmeros pontos apresentados e discutidos pelo documentário está o monitoramento constante exercido pelas redes sociais, já que fornecemos dados pessoais às plataformas a todo momento. De acordo com o nosso comportamento nas redes, o algoritmo trabalha para que apareçam no nosso feed apenas opiniões e conteúdos que nos interessam, criando-se assim uma realidade personalizada, a chamada bolha de informação. Esse cenário reforça as convicções pessoais de cada um e leva a pessoa a entender seu ponto de vista como traço absoluto da verdade. Nós nos encontramos em um momento, marcado pelo que se chama de pós-verdade, no qual ficções e distorções factuais podem ganhar contornos de realidade. A realidade pouco importa e sim as percepções que se podem produzir a partir dela. Em suma, essa nova era tem como objetivo produzir discursos que contradizem a realidade criando, assim, teorias da conspiração e disseminando fake news.

Com isso, os riscos à democracia, ciência, comunicação humana, bolhas de radicalização só vão aumentar. Sofremos uma psicose social generalizada causada pelas redes. Em conversa com a jornalista Ruth de Aquino, o pediatra Daniel Becker, disse: “a gente perdeu a etiqueta e a autocontenção, são tempos de autoglorificação e autoidolatria espantosas. Como somos incríveis em contraste com uma vida normal. A gente desvalorizou nossa privacidade” (O Globo, RJ, 11/04/2024). As mídias sociais, atentas para as predisposições psicológicas dos internautas, tentam limitar e controlar, de alguma maneira, as possibilidades de recepção. Com a personalização dos dados, as redes sociais apresentam uma realidade paralela, irreal, que são personalizadas individualmente para que o usuário acredite que todas suas conexões compartilham da mesma opinião. A modificação é tanta que traz o questionamento sobre o que é realmente verdade.

O consumo do noticiário, sem compreendê-lo e interpretá-lo minimamente, oferece uma condição bastante precária para formar uma opinião pública esclarecida e ilustrada. Em 2016, o Washington Post noticiou um estudo de cientistas da computação da Columbia University e do French National Institute que concluía que 6 em 10 pessoas compartilham o link de uma notícia sem sequer terem lido o conteúdo. Não à toa, a razão e a sensibilidade são atropeladas diariamente pela indústria do processamento instantâneo e artificial de fatos e opiniões. Como bem frisou o filósofo Walter Benjamin (1892-1940): “Ficamos pobres. Abandonamos uma depois da outra todas as peças do patrimônio humano, tivemos que empenhá-las muitas vezes a um centésimo do seu valor para recebermos em troca a moeda miúda do ‘atual’” (Experiência e pobreza, 1933).  

Redes sociais são estruturas sociais que existem desde a antiguidade, porém estavam limitadas no tempo, pela linguagem oral, e no espaço, pela geografia. Hoje, as redes sociais digitais colapsaram as barreiras de tempo e espaço, podendo teoricamente abranger um número ilimitado de “amigos” ou relacionamentos. Elas vêm se tornando mais abrangentes e complexas devido à evolução das tecnologias de comunicação e informação. Assim como na Grécia Antiga havia a Ágora, local em que o cidadão se manifestava, fazia discussões políticas, divertia-se, trocava informações e fazia negócios, na atualidade as redes sociais digitais são uma espécie de Ágora Moderna Virtual em que é possível realizar à distância quase todas as atividades do cidadão ateniense de outrora. No entanto, a gestão de relacionamentos e a reação frente a momentos agudos de comoção social são alguns dos desafios que se apresentam para as gerações dessa “era digital”.

A partir do imediatismo ampliado pela publicidade computacional dos tempos ligeiros, o sensacionalismo ganhou nova injeção de ânimo com o “humanismo seletivo” operado pela ordem do cruel e do grotesco. Das mídias analógicas ao mundo digital, a insensibilidade comunicativa foi se fortalencendo enquanto mercado noticioso do banal e do bombástico. Assim a vida se perde diante da pulsão de morte. A propósito, o poeta Manuel Bandeira (1886-1968) escreveu versos singulares: “João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro/da Babilônia num barracão sem número./Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro/Bebeu/Cantou/Dançou/Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado” (Poema tirado de uma notícia de jornal, 1930). 

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Marcos Fabrício Lopes da Silva  é membro da Academia Cruzeirense de Letras (ACL, Cruzeiro-DF). Doutor e Mestre em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (FALE-UFMG). Poeta, professor autônomo e pesquisador independente. Jornalista, formado pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). Como crítico literário e estudioso da mídia, é autor do livro Machado de Assis, crítico da imprensa (Outubro Edições, 2023).