Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Baixaria nos comentários online impõe mediação jornalística

Foto: Robin Worrall

A temperatura da campanha eleitoral de 2022 lentamente começa a subir e tudo indica que vai chegar a limites críticos no primeiro semestre do ano que vem, obrigando o jornalismo a assumir também a posição de mediador na previsível polarização política nas redes sociais.

Todos os grandes conglomerados jornalísticos do país, mais os blogs independentes e usuários de redes sociais devem sofrer o impacto da radicalização ideológica alimentada por comentários, acusações e fake news que inevitavelmente tumultuarão o contexto informativo espalhando a confusão e incerteza entre os leitores, ouvintes, telespectadores e internautas.

É tudo o que o jornalismo não deseja porque o caos virtual pode anular os esforços para disseminar notícias confiáveis, exatas, equilibradas e pertinentes. Por isto, é essencial que, desde agora, tanto as redações como os profissionais autônomos passem a se preocupar com a chamada gestão de audiências, ou moderação de comentários.

Esta não é uma atribuição incluída nos manuais de redação, mas é uma atividade que está ganhando espaço em muitas publicações digitais ao redor do mundo, especialmente nos Estados Unidos, Alemanha e Austrália. Nos Estados Unidos, há experiências como a do jornal The Laconia Daily Sun, da pequena localidade de Laconia, no estado de New Hampshire (ao norte de Massachusetts) que designou um repórter só para mediar mensagens online postadas por leitores.

Muitos alegarão que a função do jornalismo é produzir notícias e não apagar incêndios provocados pelo destempero político e ideológico de internautas. É verdade, mas também é igualmente certo que o bate-boca apaixonado tende a atrair mais a atenção dos leitores de blogs, redes sociais e áreas de comentários em sites jornalísticos. Com isto o trabalho de investigação, edição e publicação de notícias perde boa parte do seu impacto, o que é extremamente frustrante para qualquer repórter ou editor.

A internet está mudando os comportamentos políticos da maioria das pessoas ao interferir nos seus hábitos informativos, o que acaba afetando o exercício do jornalismo. Assim, nós, profissionais da notícia, não teremos outro jeito senão mudar nossas práticas e assumir a necessidade de um relacionamento direto com o público, para evitar que as paixões eleitorais atropelem o jornalismo.

Ação coletiva de leitores

Durante quatro anos editei o blog Código Aberto (hoje inativo), aqui no Observatório da Imprensa, e tive que conviver, quase diariamente, com os desentendimentos entre leitores comentando meus textos. O dilema era entrar na discussão ou ficar de fora. A prática mostrou que a omissão deixava o campo livre para a radicalização. Por outro lado, tomar partido levava um dos lados a reagir, o que também aumentava a tensão. O jeito foi buscar uma terceira opção: tentar entender os autores de comentários agressivos.

Não foi fácil, porque em certos momentos tive que ser mais psicólogo do que jornalista, mas com isto, após seis meses, a tensão foi lentamente baixando até a agressividade praticamente desaparecer. Sumiu porque os demais leitores verificaram que eles não podiam expressar suas opiniões já que dois ou três comentaristas monopolizavam o bate-boca. A moderação veio dos próprios leitores.

O caso do Laconia Daily Sun é interessante porque o jornal tinha uma histórica tradição de publicar todas as mensagens de leitores, desde a época em que circulava apenas na versão impressa. Mas, no ano passado, no auge da polarização alimentada pelo governo Trump, um conhecido líder local mandou para publicação uma mensagem de conteúdo antijudaico.

O jornal hesitou, mas acabou seguindo a tradição. Foi o pretexto para uma verdadeira guerra de mensagens entre um pequeno grupo de adeptos e seguidores de Donald Trump. A violência do debate começou a afastar os demais leitores, o que alarmou a direção do jornal que resolveu agir para evitar o pior. Além de obter financiamento para contratar um repórter-mediador, o Laconia Daily Sun buscou o apoio da organização Solutions Journalism Network (Rede Jornalismo de Soluções) responsável pelo desenvolvimento de um método específico para lidar com audiências turbulentas em projetos jornalísticos online.

Resolver “complicando”

O programa chamado Complicate the Narrative (Complique a Narrativa) é composto de 22 perguntas a serem formuladas pelo mediador aos comentaristas envolvidos no bate-boca online com o objetivo de reduzir a agressividade por meio da identificação das razões que estão por trás da polarização. O mediador não busca definir quem está certo ou errado, e muito menos tomar partido, mesmo quando diretamente atacado.

A estratégia de ”complicar” discussões violentas foi basicamente desenvolvida pela jornalista norte-americana Amanda Ripley, autora de um ensaio , publicado em 2018, onde ela propõe que os jornalistas deixem de se preocupar em dar espaços iguais para os lados em conflito e passem a dar mais atenção às razões pelas quais a divergência surgiu e se agravou.

O ensaio tomou como base uma edição especial do programa Sixty Minutes, da rede CBS, sobre a polarização ideológica entre os norte-americanos. As três horas de gravação foram compactadas num programa de 16 minutos que começou em temperatura máxima nas agressões mútuas entre os participantes, mas acabou de forma surpreendente. Para o setor de marketing da emissora foi um rotundo fracasso porque a maioria dos telespectadores achou o resultado monótono, já que esperavam um festival de agressividade.

Mas para a mediadora Oprah Winfrey, que conduziu o programa, ele foi um sucesso espetacular porque a técnica de “complicar” a narrativa dos contendores conseguiu esfriar os ânimos e levar o confronto de ideias a um desfecho inesperadamente tranquilo. Foi uma prova de fogo bem-sucedida para a proposta de que repórteres e editores têm, também, uma função mediadora no jornalismo digital.

Nós, os profissionais do jornalismo, fomos treinados para estimular o confronto de ideias e práticas como forma de aumentar a atenção e o interesse do público sobre temas e reportagens. Mas hoje, na era dos tribalismos políticos, ideológicos e comportamentais, o conflito pode facilmente escapar do controle da imprensa, com consequências que podem se voltar contra o próprio jornalismo.

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Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.