Uma série de montagens visuais com o rosto do ministro Fernando Haddad surgiu nas redes bolsonaristas. As peças fazem trocadilhos pejorativos com referências midiáticas, no mesmo acabamento rudimentar que (não) disfarça o profissionalismo da autoria.
São os tais “memes” (iconotextos, na língua semiótica), de existência quase tão antiga quanto a da própria internet. Há milhões dessas figuras em circulação diária, das mais variadas estirpes, envolvendo celebridades, anônimos, bichos, personagens etc.
De repente, simultâneos, Folha, Estadão, Globo e outros veículos informativos trataram de divulgar o material contra Haddad. Algo que ficaria restrito a nichos radicais ganhou a atenção de um público mais amplo, endossada pelo discurso jornalístico.
Em outras palavras, a mídia que se afirma democrática e legalista ajudou a disseminar material enganoso, ofensivo a uma autoridade pública, não muito diferente dos produtos da indústria de crimes cibernéticos do fascismo. Mas qual seria a notícia no episódio?
Os editores têm duas respostas possíveis. Se entenderem que houve um crime, deveriam ter seguido os protocolos éticos da denúncia jornalística: nomear o delito, esclarecer os fatos deturpados, cobrar as autoridades responsáveis. Apurar.
Isso não aconteceu. As difamações receberam tratamento de ironia crítica legítima. Haddad e o governo ocuparam espaços de contraponto, como se tivessem justificativas a dar. Como se os próprios veículos não soubessem discernir as falácias insinuadas.
De outro lado, a notícia poderia ser o alcance das mensagens. Mas a cobertura aumentou essa visibilidade no ato de repercuti-la. Em suma, criou o fenômeno que motivaria o destaque inicial. Potencializou o dano malicioso para explorar seu interesse.
Critério de noticiabilidade, sempre discutível, é terreno propício para o cinismo. Entre os registros literais das bravatas fascistas de Jair Bolsonaro e os artigos que julgam os discursos de Lula, o rigor seletivo das redações exala seus pendores ideológicos.
Tão sisudos para a falta de provas em acusações incômodas, os fiscais da verdade não acham correto problematizar os memes contra Haddad. Agências que denunciam “fake news” da esquerda fazem vistas grossas diante de material similar que a atinge.
Há anos, centenas de imagens ridicularizam Sérgio Moro, a família Bolsonaro, Tarcísio de Freitas, ministros do STF e Arthur Lira, com popularidade e relevância contextual, mas são ignoradas pela imprensa. A reputação de Haddad não inspira o mesmo cuidado.
O problema já seria grave se ficasse na ingênua adesão ao vale-tudo digital, que certo jornalismo acha eficaz para reverter sua crise de legitimidade. Nivelando-se pela estupidez hegemônica, esse campo vira apenas outra ferramenta propagadora de memes.
Ocorre que a serventia é mais profunda e embaraçosa. O ataque à política econômica de Lula tem viés eleitoral. E o método da campanha, misturando escracho e manipulação, revela um pedigree bastante claro. Só precisamos entender de quem estamos rindo.
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Guilherme Scalzilli é historiador, escritor e cineasta. Mestre em Divulgação Científica e Cultural e doutor em Meios e Processos Audiovisuais.