Wednesday, 13 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A maior ameaça aos jornalistas é a precarização

(Foto: Aline Ponce por Pixabay)

Depois de quatro anos de ataques brutais contra a imprensa e os jornalistas sob a gestão bolsonarista, dois relatórios mostraram que a violência contra trabalhadores de mídia recuou entre 40 e 50%. Tanto a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) quanto a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), que monitoram essas hostilidades, sinalizam outras tendências, como o aumento do assédio judicial. Mas a maior ameaça aos jornalistas brasileiros hoje é um outro tipo de violência. É a precarização do trabalho e todo o conjunto escorado nela: adoecimento mental e físico, sobrecarga, violação de direitos e empobrecimento de renda da categoria – e do próprio Jornalismo. 

Janara Nicoletti, premiada pela tese que relaciona condições de trabalho com qualidade do jornalismo, definiu alguns indicadores para avaliar a precarização social desses trabalhadores: “flexibilização da jornada, salário, vínculos precários (freelancer, MEI, PJ, autônomo, contrato por tempo determinado), multifuncionalidade, infraestrutura insuficiente para o labor, intensidade do trabalho, insegurança de vínculos, insegurança de emprego (insegurança do labor), desregulamentação profissional, feminização do trabalho e segurança à vida (riscos e adoecimento)”.

Nos últimos anos, são diários os relatos de pessoas falando sobre baixos salários, falta de pagamento e irregularidades. Denúncias e desabafos são escoados pelas redes sociais, grupos de mensagem e nas rodas de bar. Os casos também chegam aos sindicatos do país por raras vozes que compartilham com seus colegas suas propostas constrangedoras. A precarização impõe aos freelas e aos empregados um silêncio – é o receio de se “queimar” no “mercado” culturalmente operado por indicações e mergulhado em passaralhos.

Um editor voltou à redação que trabalhou por um salário menor que 16 anos atrás, e não só com uma carga horária maior, como também por uma intensidade maior de tarefas, exigindo várias funções. “Termino o expediente com a sensação de estar sempre devendo.”  Cada vez mais frequentes são relatos de “empregadores” que não exigem horários de trabalho para fugir das legislações trabalhistas e combinam apenas as “entregas”. No entanto, esses mesmos gestores são aqueles que monitoram seus PJs por meio de grupos de WhatsApp, Discord ou Slacks, convocando-os para reuniões desnecessárias ou exigindo metas só alcançáveis com extensão de jornada.

A precarização também se manifesta de outras formas. Mesmo em redações maiores, repórteres só podem usar o aplicativo de transporte pago pela empresa por, no máximo, seis vezes ao mês. Se quiser construir um bom quadro de fontes, que vão além da presença em coletivas, o jornalista vai ter que bancar seu Uber.

O problema não é só ser mal pago e desprezado em todas as suas potencialidades. Na narrativa do jornalista “empreendedor sob demanda”, “colaborador”, “autogerente do seu tempo, do sustento e da carreira”, brotam depoimentos de comprometimento da saúde. Durante o apagão em São Paulo, um frila teve um pico de pressão ao tentar explicar “ao contratante” que, infelizmente, ficou sem internet. Foi orientado a pagar do seu bolso um coworking. 

O Perfil do Jornalista Brasileiro 2021, projeto coletivo de pesquisa importantíssimo, mostra que 60% dos jornalistas trabalham para mídias online e mais da metade trabalha em casa. A maioria pagou parcial ou totalmente pelos custos: energia, wifi, conserto de equipamentos etc. “Eles estavam sob um alto nível  de estresse com carga de trabalho excessiva e horas extras. Além disso, 50% daqueles em outras áreas de comunicação desenvolveram funções de rede social não relacionadas a sua descrição de trabalho”, analisaram Roseli Figaro e Janara Nicoletti.

O mesmo censo apontou que 54,6% dos respondentes ganhavam entre  R$ 1.101 e R$ 5.500. É provável que, mesmo com inflação nos últimos três anos e aumento de desemprego, esses dados não mudaram muito. Em São Paulo, o piso salarial por sete horas de trabalho é R$ 6.841,20. O custo para morar e comer na maior cidade do país torna essa remuneração um convite diário à desistência.

Dados de desemprego são igualmente empíricos.Thiago Tanji, presidente do Sindicato dos Jornalistas de SP, lembra que, desde a reforma trabalhista de 2017, a obrigatoriedade da homologação da rescisão de contrato junto a sindicatos deixou de ser obrigatória, inviabilizando um monitoramento do número de demissões por carteira assinada. “No ano passado e esse ano também, a gente sabe do aumento de demissões em grandes, médias e pequenas empresas. A gente também sabe de sites oferecendo vagas de PJ com salário bem abaixo do piso”.

Recentemente, dois veículos conhecidos por reportagens investigativas dispensaram CLTs em troca de colunistas e editores sem carteira assinada. Há outros exemplos nos quais sequer houve troca de equipes. “O crescimento da pejotização foi tanta que alguns empregados chegaram a ser impostos de aceitar o modelo de contratação via pessoa jurídica se quisessem continuar trabalhando nas redações”, escreveram em 2023 Daniela Osvald Ramos e Lorrana Rodrigues Freitas, da Universidade de São Paulo.

Com a Inteligência Artificial e a automação nas redações, cargos foram eliminados e muita gente já estará nesse mercado se resignando a pagamentos vergonhosos para sobreviver. Com a crise de sustentabilidade dos veículos, sejam eles “independentes” ou “mainstream”, o sentimento de insegurança e inutilidade inundaram várias gerações.

Em 2024, as campanhas orquestradas de desinformação, com seus deepfakes mais sofisticados e baratos, estarão presentes em mais um ciclo eleitoral. É só mais uma face que mostra como o Jornalismo especializado, com o domínio das ferramentas para enfrentar essas novas realidades, se faz cada vez mais necessário. Precarizar as relações de trabalho e o acesso dos profissionais às melhores qualificações é entregar à sociedade informações e serviços também precarizados.

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Maria Esperidião foi gerente da Abraji e hoje faz pós-doutorado no Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho da Universidade de São Paulo.