Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Argentina e Espanha: crise binacional, fragmentações internacionais

(Foto: RS/Fotos Publicas)

A Espanha solicitou o retorno de Maria Jesús Alonso Jiménez, sua embaixadora na Argentina, de modo “permanente”, em 21 de maio de 2024. Como Buenos Aires e Madri, de uma longa tradição de amizade, puderam chegar a este ponto? Como podemos interpretar uma crise que desestabiliza a cooperação gradualmente construída entre os dois lados do Atlântico desde a restauração da democracia na Espanha e na América Latina?

Paradoxalmente, a resposta é bem simples, tal como dizer “bom dia”. A corrente que ameaça varrer tudo à sua frente vem do Rio de la Plata. Ela tem um nome, Javier Milei, que é o atual anfitrião da Casa Rosada, sede do poder presidencial argentino, desde 10 de dezembro de 2023. O presidente do governo espanhol, Pedro Sánchez, um socialista, representa o que o líder argentino vem combatendo veementemente, de todo coração. A Espanha, onde se encontram hoje seu coração e sua carteira, até pode ser o lar do Partido Popular, mas é, acima de tudo, o lar do partido de extrema-direita, Vox. Seu amigo ideológico Santiago Abascal, presidente do Vox, o convidou para falar como se fosse uma “estrela americana” no “Europa Viva 2024”, a primeira “rave” eleitoral europeia do partido de extrema-direita. Milei aceitou sem hesitar. Em 19 de maio, na reunião de seu compatriota Abascal, Milei chamou a esposa de Pedro Sánchez, presidente do governo espanhol, de “mulher corrupta”. Ele estava se referindo aos processos judiciais movidos contra a esposa do primeiro-ministro espanhol por várias organizações de direita e de extrema-direita.

O divórcio entre os dois países é o resultado desse comentário polêmico feito em Madri, em um contexto eleitoral, por um chefe de Estado estrangeiro. A controvérsia destruiu 40 anos de boas relações, promovidas do lado argentino pelos justicialistas, radicais e liberais (o partido PRO), e do lado espanhol pelos socialistas e populistas do PP. O vaso do Sul profundo hispânico que associava a Espanha à América Ibérica foi quebrado. Como resultado, o acordo do Mercosul com a União Europeia sofreu um revés.

Durante a campanha eleitoral, Javier Milei afirmou suas convicções libertárias radicais, tanto políticas quanto econômicas. Ele prometeu governar com uma motosserra na mão. Isso está em andamento. Ele começou reduzindo o perímetro da nação argentina, cortando o bem-estar social, a educação e os subsídios universitários e privatizando os bens públicos. O que era menos esperado era o espírito de cruzada internacional do novo presidente. Ele rompeu com a política de Estado e cortou as relações diplomáticas da Argentina com todos aqueles que ele suspeitava serem socialistas. O Brasil, a China, a Palestina, a Santa Sé e agora a Espanha não são mais considerados por Buenos Aires como parceiros ideologicamente compatíveis. O chefe de Estado argentino criticou verbalmente o Papa, assim como os presidentes de países suspeitos de estatismo.

Milei fez isso sem levar em conta os protocolos da sociedade internacional. Ele age externa e internamente da mesma forma. Ele só quer falar com aqueles que compartilham seu “credo” liberal e neoliberal. De acordo com o costume, as autoridades espanholas autorizaram seu avião a pousar em um aeroporto militar na capital espanhola, Torrejón de Ardoz. Insensível a essas cortesias diplomáticas, Javier Milei reagiu como um intolerante confesso.

Desdenhando da cortesia diplomática, em 19 de maio ele se recusou a fazer um desvio para a Zarzuela e a Moncloa, as residências do Rei Philippe VI e do Presidente do Governo, Pedro Sánchez, antes de sua reunião. Em resposta, um ministro socialista espanhol, Óscar Puente, Ministro dos Transportes, que também está em campanha eleitoral, insinuou que o comportamento de Milei só se explicaria por talvez estar sob o efeito de alguma “substância”. O episódio seguinte, a réplica, foi dada pelo argentino em seu nível. Depois de igualar o socialismo ao peronismo, Milei atacou a esposa de Pedro Sánchez, Begoña Gómez. O ministro das Relações Exteriores da Espanha, José Manuel Albares, exigiu solenemente um pedido oficial de desculpas do presidente argentino no Palácio Moncloa. A embaixadora espanhola em Buenos Aires foi chamada de volta a Madri em 19 de maio.

Milei, de volta a Buenos Aires, optou deliberadamente por insistir no assunto. “Ele é tão medroso”, disse ele sobre Pedro Sánchez, “que pediu às mulheres que viessem me pedir satisfação”. Autor de um livro que não deixa dúvida de seu conteúdo, “Capitalismo e Socialismo”, que ele lançou em 22 de maio, na antiga arena da capital argentina, o Luna Park, fez o mesmo novamente: organizou um “show”, que foi transmitido ao vivo, pelo site da Presidência da Argentina. Milei subiu ao palco com uma música de Raffaella Carrá, uma cantora italiana de sucesso, tocando ao fundo, com a letra alterada para: “Pedro, Pedro, Pedro, sua esposa é corrupta, e você também”. Houve outras piadas, ainda mais cruas, na mesma linha. Seguiu-se um show de um homem só, burlesco e ideologicamente carnavalesco. Seu ator, Javier Milei, continuou insistindo na letra, lançando um ataque ideológico em grande escala “contra o socialismo no século XXI”, Antonio Gramsci, o Fórum de São Paulo e o Grupo Puebla. Referindo-se, desta vez à sua aparição improvisada na Espanha no encontro do Vox, ele disse: “é divertido sair por aí ao redor do mundo para travar a batalha cultural” contra o socialismo, “Viva a liberdade, merda!”.

O espetáculo e a arenga, apreciados pelo público, foram muito menos apreciados na Moncloa. Madri chamou definitivamente sua embaixadora, conforme mencionado acima. A apresentação no palco foi, sem dúvida, de alta qualidade, mas institucionalmente inadequada para um chefe de Estado. O presidente argentino corre o risco de prejudicar não apenas 40 anos de cooperação bilateral de todos os tipos, mas também as relações com a União Europeia. Entretanto, o retorno anunciado de Milei a Madri em 21 de junho, sob as mesmas condições protocolares, só pode aumentar os danos. Milei receberá um prêmio concedido pelo Instituto Juan de Mariana, uma instituição espanhola neoliberal radical próxima ao setor mais à direita do Partido Popular. O diretor dessa organização justificou o convite e o prêmio “devido ao papel de Javier Milei como um divulgador bem-sucedido das ideias de liberdade em um país arruinado pelo socialismo”.

O conflito é bilateral. Mas suas repercussões vão muito além da Argentina e da Espanha. No dia 19 de maio, em Madri, a extrema-direita e os grupos de direita da Espanha, Europa, América do Norte e América Latina deram legitimidade ao comportamento ultrajante e à ostentação do presidente Milei. De Marine Le Pen, da França, a José Antonio Kast, do Chile, sem esquecer Matt Schlapp, presidente da American Conservative Union, André Ventura, líder do partido de extrema-direita Chega, de Portugal, e o presidente da Hungria, Viktor Orban. Georgia Meloni, presidente italiana, garantiu o verniz institucional a esse partido de extrema-direita. Por simpatia ideológica, ela convidou Milei para participar da próxima cúpula do G7, em 13 e 14 de junho. O patronato espanhol também apoiou o presidente argentino. Eles o receberam, como se nada tivesse acontecido, em seus escritórios em Madri. Melhor ainda, uma bela foto foi tirada na sede da CEOE, a Confederação Espanhola de Organizações Empresariais, com o presidente da CEOE, Antonio Garamendi, com Javier Milei no centro.

Foi somente no dia seguinte à foto que Antonio Garamendi emitiu um comunicado à imprensa declarando sua “profunda rejeição às declarações irrelevantes feitas pelo representante argentino”. Ele também ressaltou que os interesses espanhóis na Argentina são “muito importantes” e “quer queiramos ou não, o presidente do governo (espanhol) é nosso presidente”. O Partido Popular, depois de considerar a convocação da embaixadora espanhola de Buenos Aires como nula e eleitoreira, retificou cuidadosamente sua posição, argumentando que Javier Milei e Pedro Sánchez estavam exagerando e que a questão precisava ser “reorientada”. Mas, apesar de uma investigação da Unidade Central de Operações da Guardia Civil espanhola, que não encontrou nenhuma evidência de impropriedade por parte da esposa do primeiro-ministro, o Vox e o Partido Popular persistem em suas denúncias, confiando no ditado popular “onde há fumaça, há fogo”. Assim, estão alimentando o ardor inquisitorial do homem que legitimaram como seu semelhante, Javier Milei.

Poucos chefes de Estado enviaram uma mensagem de apoio democrático ao presidente do governo espanhol. As exceções foram Bolívia, Brasil e Colômbia. Em 22 de junho, em Hamburgo, Javier Milei receberá um prêmio concedido por uma fundação de economistas alemães de extrema-direita, a Friedrich Hayek Society. O que o chanceler Olaf Scholz vai fazer? Ele é um socialista, como Pedro Sánchez, mas sabemos que ele está preocupado com a economia de seu país. A Argentina é dotada de recursos energéticos que são de interesse para empresas de todo o Reno. O German Accelerator, um grupo alemão de startups, abriu seu primeiro escritório latino-americano em Buenos Aires. A Alemanha também está pressionando Bruxelas para acelerar as negociações entre a Europa e o Mercosul. Um grupo de associações alemãs já lançou um mês anti-Milei, de modo a não deixar em brancas nuvens a visita do presidente argentino, solicitando ao chanceler que suspenda as negociações Europa/Mercosul e não receba sua “contraparte” do Rio da Prata…

Notas 

Texto originalmente publicado em francês, em 25 de maio de 2024, no site Nouveaux Espaces Latinos, Paris/França, com o título original: “Argentine – Espagne : crise binationale, fragmentations internationales”. Disponível em: https://www.espaces-latinos.org/archives/120352. Tradução de Andrei Cezar da Silva e Luzmara Curcino.

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Jean-Jacques Kourliandsky é Diretor do “Observatório da América Latina” junto à Fundação Jean Jaurès, na França, é especialista em análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe, e autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014). Colabora frequentemente com o “Observatório da Imprensa”, no Brasil, em parceria com o Laboratório de Estudos do Discurso (LABOR) e com o Laboratório de Estudos da Leitura (LIRE), ambos da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).