Qual a diferença entre um fanático islamita do Iraque e um fanático cristão evangélico brasileiro? Vamos recorrer à literatura. No caso, ao prestigioso prêmio Goncourt do primeiro romance de 2021, concedido à escritora argelina Emilienne Malfatto por seu livro “Que por você se lamente o rio Tigre”.
É a história do último dia de uma jovem iraquiana, que será morta por seu irmão pelo crime de ter ficado grávida sem ter antes se casado religiosamente, como manda a lei do Profeta. Para manter a honra da família, seu irmão, assim que chegar do trabalho, quebrará sua cabeça com uma grande pedra e ninguém mais poderá pronunciar seu nome. Esse crime não será punido porque, na verdade, sua irmã pecadora nunca existiu…
A outra história de pedra, ou melhor pedras, é contemporânea. São 40 mil metros quadrados de pedras, importadas de uma pedreira de Hebron, na Cisjordânia, terra do patriarca Abraão, pelo fanatismo de Edir Macedo, para construir o Templo de Salomão da Igreja Universal. Pedras consideradas sagradas, na qual tocam com fervor as mãos dos fiéis pentecostais, à espera de bençãos e milagres, em gestos idólatras de “pedralatria”?
Vamos deixar de lado o fanatismo feminicida iraquiano. Felizmente, as fogueiras cristãs onde se assavam hereges já se apagaram faz tempo, embora a exigência da submissão feminina ao homem, considerado ser superior pelo livro sagrado, continue de maneira mais soft. O que nos interessa agora são as pedras. As pedras vindas em navio cargueiro, em 2011.
Quantos milhões de reais teriam custado esses 40 mil metros quadrados de “pedras sagradas”, que não podem ser mastigadas pelos 30 milhões de famintos brasileiros? Quantos pãezinhos poderiam ter sido comprados para serem distribuídos numa Santa Ceia nacional? De nada adiantou Jesus ter alertado: “qual de vocês, se seu filho pedir pão, lhe dará uma pedra?”; Edir Macedo trouxe pedras de Hebron, na Cisjordânia, em lugar de pão, e essa importação de “pedras sagradas” não preciosas implicava no pagamento de um imposto de importação igual a 85 mil reais. Edir Macedo se revoltou com essa imposição tributária.
É verdade, embora o Brasil seja um país laico, não siga a lei mosaica e garanta a liberdade de as pessoas terem outras crenças além da evangélica, existem as exceções (no Brasil, as exceções parecem ser a regra!). Uma dessas exceções é a de que os pastores e as igrejas evangélicas não paguem impostos, nem o de renda. Ao que a Receita Federal retorquiu com outra exceção: a imunidade tributária concedida aos evangélicos e às outras religiões só vale dentro do território brasileiro, não inclui o comércio exterior.
De nada adiantou Edir ter convidado Dilma Rousseff à inauguração do Templo de Salomão com pedras de Hebron. Como também de nada adiantou Dilma ter quebrado o princípio da laicidade ao participar dessa inauguração, esperando ali conquistar a confiança dos pentecostais evangélicos. Se as pedras falassem, muito teriam o que contar.
Diante da resistência da Receita Federal, apoiada numa decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, existe a informação do pagamento do imposto pela Igreja Universal, no ano passado, no governo Bolsonaro. Porém, Edir Macedo fez um apelo à suprema instância que, provavelmente por milagre divino, caiu por sorteio para decisão monocrática com o “ministro terrivelmente evangélico”, André Mendonça, que chutou mais para baixo o princípio da laicidade do Estado brasileiro. Agora, a imunidade a impostos, ICMs inclusive, é “mista”, incluindo “o patrimônio, a renda e os serviços relacionados com as finalidades essenciais das entidades imunes”.
Ou seja, essa decisão de que importar pedra sagrada não precisa pagar imposto, pode abrir caminho para outras importações religiosas talvez mais valiosas do que pedras, desde que sirvam à missão da igreja. A porta foi aberta. Se Lula decidir dar mais alguns favores aos evangélicos, poderemos falar numa evangelização do STF, mesmo porque, embora não sendo evangélico, o mais recente ministro Cristiano Zanin vem se revelando conservador como os evangélicos, reforçando posições retrógradas e poderá travar aberturas esperadas pela esquerda.
Isso é bastante sintomático, ou seja, em poucos dias como ministro, a imprensa de esquerda e mesmo centro esquerda está assustada, pois Zanin terá pela frente uns 25 anos como ministro. Zanin preocupa os líderes de movimentos sociais petistas, que se sentem traídos, depois dos votos do novo ministro contra a equiparação da homotransfobia ao crime de injúria racial, contra a esperada descriminalização do porte de maconha para consumo pessoal e contra o princípio da insignificância para furtos de pequeno valor. Jurista experimentado na advocacia, Zanin parece mais fiel ao teor e letra da lei que à aplicação social da lei, lembrando nisso o rigorismo do inspetor Javert de “Os Miseráveis”.
A esperança agora é a indicação de uma mulher negra, porém desde que não seja evangélica porque isso poderia significar mais um reforço dos conservadores e criaria problemas em questões relacionadas com SGBT, aborto e igualdade racial.
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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.