Umberto Eco organiza os capítulos de seu mais recente romance, Número Zero, em estrutura semelhante à de O Nome da Rosa, de 1980 (Editora Record, 2009, 2„ edição), sua estreia na ficção: cada um descreve fatos ocorridos num dia do curto período de tempo em que se dá o percurso da história. Como naquela obra anterior, que atingiu imenso sucesso em todo o planeta, ele usa arquétipos que garantem sucesso a folhetins, como o poderoso oculto que tenta as almas dos inocentes; um misterioso assassinato; o amor furtivo entre pessoas de estirpe diferente, que afirma a pureza dos sentimentos sobre os acidentes do mundo.
Entre muitas coincidências, os dois romances se desenvolvem em torno da produção de meios de comunicação típicos do tempo: os livros manuscritos na biblioteca medieval e o jornal concebido em uma redação experimental ao final do século 20. Há também paralelo no fato de que o mosteiro do primeiro livro não produzia obras inéditas, apenas copiava, e, neste, o jornal não tem novidades, apenas reproduz fatos já noticiados por outros.
O título Número Zero remete à expressão usada por jornalistas para definir as edições experimentais usadas para testes durante a preparação de novos títulos. No enredo, um empresário decide criar um jornal para ameaçar a elite italiana. Não se trata de pôr a circular o veículo, apenas criar uns tantos números zeros para serem vistos por um número restrito de pessoas, contendo notícias potencialmente destrutivas e, sem usar a palavra chantagem, fazer-se temido e respeitado para, quem sabe, ganhar uma grana de grandes fortunas italianas em troca de não publicar nada que as prejudique.
A história se passa no ano de 1992, o último antes de o mundo conhecer a internet (que até então era um sistema de comunicação que ligava computadores de universidades e sistemas militares), o que explica por que o escritor tenha falado tanto sobre a rede de computadores nas entrevistas que marcaram o lançamento do livro, que explora o modo de produção de um jornalismo sensacionalista: segundo suas declarações, a internet passou a ser o locus do jornalismo mais escroto, amarelo, marrom, de celebridades, ou que nome se queira dar ao lixo do conteúdo que sempre circulou, mas que descobriu na comunicação eletrônica um ambiente propício.
Em O Nome da Rosa, o tempo é anulado como se o autor olhasse o passado através de uma teleobjetiva, que elimina a perspectiva e iguala os planos pretéritos. No final, o livro diz: ™Stat rosa pristina nomine, nomina nuda tenemus∫. Da rosa do passado, desaparece a história, ficam apenas os nomes. É dizer: todo o enredo do pensamento ou dos personagens se anula numa sucessão de nomes vazios.
Traduza essa ideia para um jornalismo de celebridades (ou de entretenimento, o que resulta no mesmo) e vamos ter uma sucessão feita de fatos e heróis despidos de história (uma ™linha do tempo∫, ao gosto dos infográficos tão frequentes na imprensa contemporânea). Um jornalismo de Fatos e Fotos, de Caras e Bundas, por assim dizer.
Ao descrever o modus faciendi e as regras propostas para o Amanhã, jornal sendo gestado no enredo de Número Zero, o autor faz muitas outras críticas ao jornalismo vazio, que nas entrevistas ele atribui à era digital.
Os jornais seguem ou criam tendências?
São frases como: “O leitor só vai entender o que está acontecendo se lhe disserem que há uma queda de braço entre duas forças, que o governo anuncia um pacote de sacrifícios, que vamos subir a ladeira…”. Ou: “Mas os jornais seguem tendências ou as criam? As duas coisas (…). As pessoas no início não sabem que tendências têm, depois nós lhes dizemos e elas percebem que as tinham”. E ainda: “Percebam que hoje, para contra-atacar uma acusação, não é necessário provar o contrário, basta deslegitimar o acusador”.
O livro explora também outro recurso comum no jornalismo popular, as teorias conspiratórias por trás dos grandes fatos da história. O Amanhã prepara uma grande reportagem sobre a vida do ditador Mussolini depois de escapar da Resistência Italiana ao final da Segunda Guerra. Eco é um grande escritor e por isso mesmo um grande jornalista. Torna tão verossímil a trama sobre o líder fascista, que ao final dá ao leitor a tentação de investigar: será que Eco sabe algo que nós não sabemos? Será que está sugerindo que a imprensa mundial deixou passar a grande fuga de Mussolini?
Desde a década de 1950, quando produziu seu primeiro ensaio, até hoje, Eco passou a ser reconhecido como um dos mais importantes intelectuais das ciências humanas no planeta, beneficiado por uma incansável capacidade de produzir teses, romances, cursos e artigos de imprensa (que por sua vez transforma em coletâneas de ensaios curtos).
Em sua obra de ficção, tem se caracterizado por produzir livros sobre livros, ou seja, com muitas referências. Este não é seu melhor romance, mas certamente é o de leitura mais leve e coloquial, o que talvez faça dele o mais popular. E o mais atual, por ser uma crônica da morte do jornal, tragédia contemporânea a que todos assistimos em tempo real.
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Leão Serva é jornalista, professor do curso de graduação em Jornalismo da ESPM e escritor, autor de Jornalismo e Desinformação (Senac, 2001) e coautor de Como Viver em São Paulo Sem Carro – 2013. Dirige a agência de conteúdo Santa Clara Ideias.