Há cerca de dez anos, nossa brilhante colega Eliane Brum comentava na revista Época como ia ficando difícil ser ateu ou ateia no Brasil, com o rápido crescimento das seitas evangélicas e o surgimento da intolerância. Essa intolerância estava provocando uma fase de mudança no próprio comportamento do “ser brasileiro”, mudanças e transformações profundas na vida cotidiana da sociedade brasileira.
Uma década se passou, essas mudanças e transformações se acentuaram e foram o suficiente para contribuir para o surgimento de algo mais forte: o discurso do ódio.
Talvez alguns de meus leitores mais assíduos possam considerar exagerada minha frequência, no tratamento desse fenômeno religioso, agora também político, mas já exigindo um sério estudo sociológico. Há, porém, uma razão importante: a mutação das denominações evangélicas tradicionais, vindas do protestantismo originado na Reforma de Lutero e de Calvino, nos atuais movimentos e seitas populistas que vicejam não só no Brasil, mas na América Latina e na África, deturpou suas origens.
Uma rápida visão da Reforma, quinhentos anos atrás, mostra ter sido uma reação contra a mercantilização da fé pela venda das indulgências, contra o controle e monopólio da fé exercidos pela Igreja e em favor da liberdade da livre interpretação da Bíblia, provocando as traduções do latim e o surgimento da imprensa para imprimi-la. O passo a seguir seria o humanismo.
O fundamentalismo ou conservadorismo das seitas evangélicas, a ênfase dada à contribuição do dízimo, mais a crença numa ligação direta da fé com o sucesso econômico (na chamada Teologia da Prosperidade), deformaram os princípios criadores da Reforma de há cinco séculos, numa adaptação ao capitalismo econômico norte-americano. Enquanto Tetzel, o arrecadador de dinheiro dos fiéis prometia o perdão dos pecados com a compra das indulgências, provocando a revolta de Lutero, os pastores evangélicos, criadores de mil e uma seitas que competem na busca de mais crentes, prometem o céu e a vida eterna aos seus pobres seguidores.
Tudo poderia ser uma questão de opção religiosa, e cada cidadão tem direito a optar por uma crença ou nenhuma, não fosse a atual realidade brasileira. Realidade na qual os evangélicos, no seu todo, se converteram num importante grupo de pressão política, extremamente reacionário, com o objetivo de eleger o presidente e de constituir bancadas parlamentares destinadas a impedir a aprovação de projetos ou reformas contrários aos dogmas da fé por eles defendidos.
Até aí nada há de ilegal: faz parte do próprio conceito de democracia, o direito à representatividade no Executivo, no Legislativo e no Judiciário de todos os grupos componentes da população. Na época das eleições, esses grupos procuram eleger seus representantes e se forem majoritários poderão efetuar e efetivar as reformas que julguem necessárias. Mas é também próprio da democracia haver, findas as eleições, uma diversidade e uma pluralidade suficientes para se evitar a dominância de um grupo político, econômico ou religioso sobre toda a população.
Entretanto, essa representatividade de todos e de cada grupo no governo, pode ser quebrada no caso de se instaurar uma ditadura, logo depois de se provocar um golpe.
Ora, as recentes e constantes ameaças golpistas proferidas pelo presidente Bolsonaro contam principalmente com o apoio de atividades e setores econômicos do país como o agronegócio, pecuaristas, plantadores e garimpeiros para citar só alguns. Todos estão conclamando seus membros, participantes e o povo em geral para as manifestações do dia 7 de setembro, ao que parece não só em São Paulo e Brasília, mas em todo o país.
Nas redes sociais, as ameaças incluem greves, bloqueios de estradas, transportes, paralisações de diversas atividades por diversos dias. Em síntese, o objetivo é criar o caos, que só será evitado se os objetivos visados, e isso inclui as sedes do Congresso e do STF, forem protegidos por forças policiais ou militares. As notícias parecem desencontradas no que se refere à fidelidade das polícias militares.
Ficou faltando citar os evangélicos. Embora o Brasil seja um país laico, no qual as religiões devam se manter distantes da política, os líderes evangélicos não se escondem e apelam nas redes sociais aos seus fiéis a participarem das “manifestações pacíficas” de São Paulo e Brasília.
Muitos pastores utilizam o púlpito de suas igrejas para pedirem aos fiéis participar das manifestações do 7 de setembro. Entre eles, o pastor itinerante Cláudio Duarte, da Igreja Evangélica Projeto Recomeçar, em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, que num vídeo circulando pela Internet, coloca praticamente como uma questão de honra para seus fiéis participar das manifestações do dia 7, contra o STF, pela liberdade e em protesto também contra a prisão de Roberto Jefferson.
Pior que isso: diz a seus fiéis “que estamos à beira de uma guerra civil”. Ora, o alerta deveria ser outro: a maioria dos pastores evangélicos é bolsonarista e, apesar do programa eleitoral de Bolsonaro e destes seus anos de governo não poderem ser chamados de cristãos, continuam fiéis ao Mito Messias. Para eles, o Brasil vive o risco de virar uma Venezuela e Argentina.
Da mesma maneira, muitas igrejas evangélicas, em retribuição por terem diversos pastores evangélicos no governo, tornaram-se defensoras do governo Bolsonaro, participando direta ou indiretamente da campanha contra o STF, sem condenar o discurso golpista do presidente. Sabendo-se que as igrejas reúnem seus fiéis todos os domingos e quarta-feiras, pode-se avaliar o alcance de sua influência junto aos seus membros seguidores. Fora as pregações nas redes sociais.
Os comentários de nossa brilhante colega Eliane Brum, agora relidos e ainda atuais, estão na mesma direção de um meu projetado artigo: escrever sobre a Recolonização do Brasil pelos evangélicos.
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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro Sujo da Corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A Rebelião Romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.