Então chegamos ao final de 2019. Foi um ano bastante difícil para o Brasil, para a América Latina e para o mundo. Por aqui, o primeiro ano do governo Bolsonaro colocou em xeque o Estado laico, os direitos sociais, a arte, a ciência, o sistema educacional e o meio ambiente, entre outras áreas. Logo em seu discurso de posse, no dia 1º de janeiro, Bolsonaro já deixara claro o direcionamento de seu governo a partir de colocações sobre “ideologias que destroem nossas famílias”, “acabar com o viés ideológico das relações internacionais do Brasil”, “o combate ao ‘socialismo’” e a “garantia do direito de propriedade e da legítima defesa”.
Passamos por tempos sombrios em 2019. Os membros do governo brasileiro e figuras de destaque em órgãos federais pareciam ter saído diretamente de grupos de WhatsApp. O presidente declarou que o ator Leonardo diCaprio financia queimadas na Amazônia. Para o deputado federal Eduardo Bolsonaro, as escolas não devem abrigar meninos e meninas na mesma sala de aula. Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, é notoriamente machista. A pasta do Meio Ambiente esteve sob a liderança de Ricardo Salles, defensor do desmatamento. O ministro da Educação, Abraham Weintraub, odeia professores. Tivemos um chanceler, Ernesto Araújo, que acredita na teoria da conspiração conhecida como “globalismo”. O presidente da Biblioteca Nacional, Rafael Nogueira, associou o analfabetismo ao cantor Caetano Veloso. Programas televisivos do MEC sobre a história brasileira tiveram um astrólogo como “consultor”. E o presidente da Funarte, Dante Mantovani, declarou que Elvis Presley, os Beatles e a CIA trabalharam para implementar o socialismo nos Estados Unidos. Tudo isso sem falar em Sérgio Nascimento de Camargo, “negro racista”, que foi impedido judicialmente de assumir a presidência da Fundação Palmares.
Diante de tantas idiossincrasias, não foi por acaso que Bolsonaro e os membros de seu governo, com suas armadilhas discursivas, dominaram a agenda pública nacional em 2019. Cada tweet polêmico de Bolsonaro, cada vídeo com declarações anódinas de Damares ou as críticas descabidas do ministro da Educação a Paulo Freire rapidamente se transformaram nos assuntos mais comentados em todo o país. Assim, o governo obteve bastante êxito em sua estratégia de desviar a atenção do público e mantê-lo distraído em relação às questões realmente importantes que afetavam diretamente a vida do trabalhador brasileiro, como a aplicação da nefasta agenda neoliberal de desmonte do Estado e a entrega de nossas riquezas. Tratou-se da prática qualificada pelo linguista e ativista estadunidense Noam Chomsky como “estratégia de distração”.
Frente à política de terra arrasada do governo Bolsonaro, grande parte da esquerda institucional ficou paralisada e, o que é pior, aproximou-se de nomes conhecidos do cenário político conservador. No programa intitulado Fura Bolha, o deputado pelo PSOL fluminense Marcelo Freixo trocou elogios, beijos e abraços com ninguém menos do que Janaína Paschoal, coautora do processo de impeachment de Dilma Rousseff. O mesmo constrangimento político foi protagonizado pela deputada psolista Sâmia Bomfim em relação a Kim Kataguiri, do ultra-reacionário MBL. Completando a fixação do PSOL pela extrema-direita, o deputado federal David Miranda posou para uma foto com o ex-ator de filmes adultos Alexandre Frota. Seguindo essa mesma linha, no mês de novembro, Manuela d’Ávila fez um textão nas redes sociais em homenagem a Joice Hasselmann.
O ano que está finalizando também foi marcado pela banalização do mal. Como explicar para uma mente minimamente civilizada que, no mês de agosto, o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, tenha comemorado a morte de um jovem portador de distúrbios mentais após uma ação policial? Poucos dias depois, o presidente da República se referiu à ditadura militar – período devidamente reconhecido por violações aos direitos humanos, práticas de torturas e perseguições políticas – como “nota dez” em diversos aspectos, inclusive no “amor ao próximo”. No mês de setembro, em discurso proferido em plena Assembleia Legislativa do Espírito Santo, o deputado Capitão Assumção (PSL) ofereceu 10 mil reais para quem matasse o assassino de uma jovem.
No campo, lideranças indígenas e camponesas foram assassinadas. Em Manaus, um adolescente de 17 anos matou o irmão de 18 por descobrir uma relação homossexual. Em São Paulo, num claro caso de xenofobia, um bar de refugiados palestinos foi atacado com spray de pimenta e garrafas. Também na capital paulista, um jovem negro foi chicoteado após tentar furtar uma barra de chocolate em um supermercado e, no mês de novembro, no bairro de Paraisópolis, nove pessoas foram mortas durante uma ação da Polícia Militar em um baile funk. Não houve comoção nacional. Eram só mais uns “Silvas” que as estrelas não brilham.
Em nosso subcontinente, 2019 foi marcado pelas massas tomando as ruas da Argentina, do Equador, do Haiti, do Chile e da Colômbia para protestar contra as políticas de terra arrasada implantadas por governos de direcionamento neoliberal. No entanto, na mídia hegemônica, esses protestos não tiveram “causas”, somente “consequências”. Destacaram-se as ações dos “vândalos”, que depredavam os patrimônios público e privado, e foram omitidas as políticas de rapinagem promovidas pelos grandes capitalistas internacionais em relação aos recursos dos Estados sul-americanos. Aliás, foi para colocar em prática a agenda neoliberal que ocorreram os golpes no Paraguai, em 2012, no Brasil, em 2016, e na Bolívia, de Evo Morales, em novembro deste ano.
Ainda nos noticiários internacionais, outros destaques foram a abertura do processo de impeachment contra o presidente estadunidense Donald Trump, os protestos contra a reforma da Previdência na França, as “manifestações pró-democracia” em Hong Kong, os imbróglios envolvendo a possível saída do Reino Unido da União Europeia, a tentativa frustrada de Juan Guaidó de presidir a Venezuela, a volta da esquerda ao poder na Argentina e a ascensão da ativista ambiental sueca Greta Thunberg (a “pirralha”, segundo Jair Bolsonaro).
No campo jornalístico, o grande feito do ano foi a divulgação de áudios feita pelo site The Intercept Brasil, que comprovaram como a operação Lava Jato foi arquitetada para perseguir o ex-presidente Lula e também facilitar a entrega das riquezas brasileiras para os grandes capitalistas internacionais.
Falando nisso, a libertação de Lula, após 580 dias preso, causou grande alvoroço no cenário político nacional no final de 2019. Não por acaso, o grande temor dos setores conservadores de nossa sociedade é que o ex-presidente, enfim livre, possa reacender a chamada “polarização política”.
Este ano também foi marcado pelos usos de “eufemismos”, isto é, figuras de linguagem que empregam termos mais agradáveis para suavizar uma expressão. Para o MEC, “corte de investimentos em educação” virou “contingenciamento”; para a empresa Vale, o “crime ambiental” ocorrido em Brumadinho após o rompimento de uma barragem foi caracterizado como “acidente” e, segundo os torcedores do recém-rebaixado Cruzeiro Esporte Clube, “segunda divisão” agora é “série A2”.
No ano em que a inusitada Caneta azul, de Manoel Gomes, foi hit nacional após viralizar no YouTube, a música popular brasileira perdeu um de seus maiores gênios: o ícone da bossa nova João Gilberto. Em fevereiro, o Clube da Esquina se despediu de Tavito, autor do clássico Rua Ramalhete. O rock ficou sem o ativismo de Marcelo Yuka e a voz de André Matos, respectivamente em janeiro e junho. Já o samba lamentou a perda de Beth Carvalho.
Por fim, no apagar das luzes deste conturbado 2019, cristãos de todo o país (sobretudo evangélicos) se uniram para que a Netflix retirasse do ar o especial de Natal do coletivo Porta dos Fundos – a sátira A primeira tentação de Cristo -, pois, segundo eles, a produção, que apresenta Jesus como homossexual, “ofende gravemente os cristãos” (o que, evidentemente, não corresponde à realidade). Nas redes sociais, o deputado Marco Feliciano (recentemente expulso do Podemos) apontou que “está na hora de uma ação conjunta das igrejas e pessoas de bem para dar um basta nisso”.
No entanto, o que mais incomodou o fundamentalismo cristão não foi uma suposta blasfêmia do Porta dos Fundos, mas a representação da homossexualidade. Desse modo, a indignação pública com o vídeo A primeira tentação de Cristo foi uma maneira de expressar tacitamente determinados sentimentos de homofobia, sem ser tachado de preconceituoso. Poderia ser a Idade Média, mas foi apenas o surreal 2019.
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Francisco Fernandes Ladeira é mestre em Geografia pela UFSJ. Autor (em parceria com Vicente de Paula Leão) do livro A influência dos discursos geopolíticos da mídia no ensino de Geografia: práticas pedagógicas e imaginários discentes, publicado pela editora CRV.