Nunca é cedo ou tarde demais para se falar em política, ela é a arte do entendimento. Ainda mais num ano da disputa mais acirrada do calendário eleitoral brasileiro, as eleições municipais, quando os candidatos se engajam num corpo a corpo pelos votos para vereador e prefeito. Em Porto Alegre, o cartão-postal da tragédia instalada no Rio Grande do Sul pelo novo normal do clima, não tem como os jornalistas não fazerem a seguinte pergunta aos postulantes à prefeitura: “Qual é o seu projeto para revitalizar o sistema contra as cheias da Capital?”. O colapso do sistema pela falta de manutenção causou o alagamento e a saída de centenas de pessoas do Centro Histórico, além de inundar dezenas de ruas em outros bairros próximos ao Guaíba. Também colapsaram por tempo indeterminado o Aeroporto Internacional Salgado Filho, a Estação Rodoviária e hospitais. O atual prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), 65 anos, concorre à reeleição. Concluído em 1974, durante a ditadura militar que governou o país de 1964 a 1985, o sistema contra as cheias foi ativado em quatro oportunidades nestes últimos anos, duas delas no mandato de Melo. Mas ele não é o único culpado pela falta de manutenção no sistema, teve o azar do rolo ter estourado no seu governo. Nestes 50 anos de existência do sistema, Porto Alegre teve nove prefeitos eleitos diretamente e três nomeados pelo regime militar.
Vamos aos fatos. Resumidamente, o sistema contra as cheias de Porto Alegre é uma série de barreiras erguidas ao longo de 68 quilômetros para impedir que as águas do Lago Guaíba, ou “Rio Guaíba” como chama a população, invada a cidade como aconteceu na catastrófica enchente de 1941, quando as águas subiram para 4m73cm. Por 83 anos, esta foi a maior enchente da cidade. No domingo (5), o Guaíba alcançou 5m31cm e, agravado pela falta de manutenção do sistema contra as cheias, invadiu a cidade, inclusive pelas 14 comportas (de 6 metros de altura) que fazem parte do Muro da Mauá, uma parte importante do sistema contra as cheias. Além de Melo, a deputada federal Maria do Rosário (PT) é outra provável candidata à prefeitura. Que influência a tragédia terá nas eleições municipais, só saberemos nas horas seguintes ao fechamento das urnas. Portanto, considero que seja perda de tempo ficar especulado sobre o assunto neste momento. A prioridade da imprensa frente ao atual quadro é buscar conhecer profundamente a história e o estágio de deterioração do sistema contra as cheias de Porto Alegre. Eu não sirvo de parâmetro, porque passei a maior parte das quase quatro décadas em que trabalhei em redação viajando, fazendo matérias sobre conflitos agrários, crime organizado nas fronteiras e migrações nos rincões do Brasil e dos países vizinhos. Inclusive, por ignorância, me perfilava entre os repórteres que defendiam a derrubada do Muro da Mauá. Afirmo, sem medo de estar cometendo um erro, que a minha geração de repórteres (tenho 73 anos) e também as atuais que estão nas redações dos jornais, rádios e TVs têm um conhecimento pequeno e precário sobre o sistema contra as cheias de Porto Alegre. Não tem um motivo que possa ser citado pela falta de interesse dos jornalistas pelo assunto. Aconteceu. É assim que são as coisas funcionam nas redações desde os tempos em que as matérias eram redigidas molhando a ponta de uma pena num tinteiro.
É justamente essa ignorância de nós jornalistas sobre assuntos que se tornaram relevantes, como é o caso do sistema contra as cheias, que abre espaço para a consolidação da indústria das fake news. O conhecimento sobre como o sistema contra enchentes de Porto Alegre funciona vai permitir aos jornalistas tornarem o tema uma das principais pautas dos candidatos a vereador e prefeito da Capital. Vou lembrar uma história que considero ser adequado citá-la. Como todo foca, logo que comecei a trabalhar em redação só pegava “carne de pescoço”, como os jornalistas chamam as matérias de menor importância. Um dia, estava apavorado, escrevendo uma história, pressionado pelo editor, que exigia que eu concluísse logo a “materiazinha”. Foi quando um velho repórter que fazia cobertura policial me disse uma frase que nunca mais esqueci: “Para de brigar com a notícia. Termina este texto e vamos beber uma cerveja”. Geralmente, quando o repórter empaca em uma matéria é porque a apuração dela deu um resultado que não era o esperando. Daí perder tempo tentando adaptar o resultado da apuração ao que a pauta sugeria que tivesse acontecido. Acrescento uma explicação para quem não é jornalista: foca é repórter em início de carreira. Portanto, a partir da tragédia gaúcha, todo assunto relacionado ao novo normal do clima exige que repórter conheça profundamente do que se trata.
É obrigação da imprensa colocar como pauta nas eleições municipais dos porto-alegrenses a revitalização do sistema de contra as cheias da cidade. Por quê? A capital dos gaúchos tornou-se o símbolo da atual tragédia provocada pelas cheias causadas pelo novo normal do clima. E figura entre as poucas cidades brasileiras a ter um sistema contra as cheias que colapsou por ter tido a sua manutenção negligenciada. Na manhã de sexta-feira (10), o número de mortos pelas enchentes aumentou para 107, e o de desaparecidos a 134. Foram atingidos 334 dos 497 municípios do Estado. Lembro-me de uma coisa. Nos anos 80 e 90, as matérias em defesa do meio ambiente ocupavam a parte nobre dos noticiários. É hora do assunto voltar às manchetes.
Texto publicado originalmente em “Histórias Mal Contadas”
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Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social — habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Ufrgs. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 67 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, SP.