O que está acontecendo no Rio Grande do Sul vai nos obrigar a ir além do gigantesco esforço de atenção às vítimas das enchentes. A repetição de tragédias no Sul e no resto do país mostra que as operações de socorro não são mais um ponto fora de curva. Fica clara a necessidade da revisão urgente do nosso modelo de organização das cidades e da economia. Uma tarefa onde a informação e o jornalismo têm um papel central e insubstituível.
A instabilidade ambiental tende a virar o novo normal em nosso cotidiano, o que deveria mudar as estratégias convencionais de reconstrução de cidades, estradas, pontes e lavouras nos locais que podem ser atingidos pela próxima enchente. Os milhares de moradores de bairros inundados em Porto Alegre terão que pensar duas vezes antes de refazer suas casas, sabendo que previsíveis novas chuvaradas podem obrigá-los a refazer tudo outra vez. Idem para os empresários e agricultores que perderam tudo.
O trauma vivido pelos gaúchos provocou uma avalanche de dados, fatos e eventos gerados pela extraordinária exposição pública dos danos da tragédia, o que aumentou a complexidade da cobertura da imprensa. A enxurrada informativa trouxe de tudo, desde notícias comoventes sobre atos de solidariedade e ajuda construtiva, até a politicagem abjeta e criminosas fake news.
Cabe ao jornalismo a responsabilidade direta de garantir a confiabilidade do fluxo das notícias que alimentarão as decisões tanto daqueles que perderam bens, parentes e amigos, como das pessoas e instituições interessadas em contribuir para amenizar os efeitos da tragédia gaúcha. No quesito fake news, houve lamentáveis atitudes da imprensa como o jornal paulista que noticiou erroneamente a recusa do governo Lula em receber ajuda de lanchas e aviões oferecidos pelo Uruguai.
O drama de Porto Alegre
O trabalho da imprensa na cobertura das operações de socorro, especialmente o da TV Globo e sua afiliada gaúcha RBS pode ser considerado, globalmente, como exemplar na medida em que as equipes de reportagem enfrentaram um desastre de grande amplitude geográfica. A tragédia afetou 388 cidades (78,13% do total de municípios do RGS) e começou com avalanches de terra e água no planalto gaúcho, que foram inundando tudo até chegar ao Oceano Atlântico. No caminho ficou a capital Porto Alegre, uma metrópole com pouco mais de 1,3 milhão de habitantes e que foi transformada num trágico simulacro de Veneza pela maior enchente da sua história.
Já nas redes sociais, a polêmica correu solta com a polarização ideológica e a morbidez contaminando muitas postagens. Não é novidade que a parte socialmente insalubre da internet sempre atrai mais a atenção do público, mas a rápida denúncia das fake news na mídia e nas próprias redes sociais mostrou que aos poucos a sociedade começa a se autoimunizar contra este tipo de sociopatia, graças à checagem de notícias e ao papel do jornalismo de servir ao público (1).
Estamos deixando a era em que os governantes decidiam tudo enquanto à população cabia apenas o papel de pedir, reclamar e criticar. Hoje, com a transformação das redes sociais digitais em espaço preferencial para a circulação de dados, fatos e eventos, o debate público tornou-se muito mais complexo, condição à qual a maioria esmagadora da população ainda não se acostumou.
Agora entramos numa nova fase da tragédia das enchentes no Sul, um trabalho que deve custar cerca de 19 bilhões de reais (3% do PIB gaúcho em 2023), segundo estimativas ainda muito superficiais. É uma soma que pode acabar sendo jogada fora se não forem repensadas as estratégias de reconstrução das regiões afetadas, dada a possibilidade de ocorrência de novas catástrofes ambientais na mesma região. O debate inevitavelmente envolverá a reavaliação da estrutura urbana de cidades como Porto Alegre, onde o aeroporto mais importante do sul do país corre o risco de virar um piscinão quando enxurradas na serra causarem um novo transbordamento do Guaíba.
O parque industrial e áreas agrícolas também terão que rever sua localização para evitar que maquinários e estoques sejam perdidos durante enchentes que tendem a se tornar periódicas, em áreas onde está concentrada metade do parque industrial do Rio Grande do Sul e a maior parte da produção agrícola familiar e vinícola do estado.
Jornalismo de soluções
As cidades gaúchas de Roca Salles, Muçum, Estrela, Lajeado e Arroio do Meio, todas situadas no vale do rio Taquari já enfrentaram quatro tragédias ambientais provocadas por excesso de chuvas nos últimos 12 meses. O mesmo drama afetou localidades como Sinimbu, Pântano Grande, Venâncio Aires e Rio Pardo, todas localizadas no vale do rio Pardo cujas águas também correm do planalto gaúcho para o delta do Guaíba.
É irracional gastar milhões para reconstruir cidades que serão destruídas na próxima chuvarada. O mesmo ocorre com pontes e estradas. As áreas agrícolas também precisarão ser revistas porque lavouras inteiras, plantações de hortaliças, aviários e granjas de gado não podem ficar à mercê de oscilações climáticas brutais. A topografia do Rio Grande do Sul foi muito generosa na formação de áreas planas com solo fértil formado ao longo de séculos.
Acontece que estas terras foram trazidas do planalto gaúcho por rios que as depositaram em vales e planícies como o delta do Guaíba durante enchentes periódicas ao longo de séculos. Como o aquecimento global está intensificando as tragédias climáticas, este ciclo de inundações tende a se tornar mais frequente o que nos obriga a repensar especialmente o modelo de agricultura familiar.
É neste cenário que o jornalismo gaúcho e também do resto do país terá que funcionar sobretudo como orientador, tutor e verificador das informações que já começaram a circular no espaço público de debates nas redes sociais. O novo normal da mudança climática globalizada cria condições para que o jornalismo de espetáculo seja gradualmente substituído pelo chamado jornalismo de soluções. Trata-se de uma modalidade já praticada em várias partes do mundo cuja preocupação central é ajudar as pessoas a resolverem dilemas individuais e comunitários (2). Um jornalismo onde pensar e repensar soluções torna-se uma rotina de trabalho.
Notas
- Faço aqui uma distinção entre jornalismo e imprensa. Jornalismo é a atividade desenvolvida por profissionais e não profissionais com o objetivo identificar as necessidades informativas da população e fornecer as notícias necessárias à tomada de decisões pelo público. Imprensa é o negócio associado à distribuição de notícias. As duas funções podem coincidir, mas seguem lógicas diferentes que frequentemente as colocam em lados opostos na comunicação.
- Mais detalhes sobre o jornalismo de soluções em https://ijnet.org/pt-br/story/jornalismo-de-solu%C3%A7%C3%B5es-o-que-%C3%A9-e-por-que-voc%C3%AA-deveria-se-importar
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Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.