O programa Repórter Record que foi ar na quinta-feira passada (1º/4) pode não ter sido, digamos, um grande exemplo de bom jornalismo: partes diferentes envolvidas na mesma questão não foram ouvidas e um sem-número de imagens – que incluíam desde crianças torturadas na África até comentários de expoentes da emissora – foram grosseiramente manipulados, para dizer ao mínimo.
Na verdade, não foi bem um programa jornalístico que a emissora colocou no ar, mas um imenso editorial atacando a Rede Globo e o BNDES. Aí, o programa poderia ter feito um estrago. Não há registro, na história recente da televisão brasileira, de ataques tão contundentes de uma rede à outra. Exceto pela campanha promovida pela Globo, não diretamente contra a Record, mas contra a Igreja Universal do Reino de Deus, logo após o episódio do ‘chute na santa’.
Os leitores se lembram: no dia 12 de outubro de 1995, o bispo Sérgio von Helde, da Universal, chutou uma imagem de uma santa em rede nacional de televisão. Era o sinal que a Globo esperava para deflagrar uma série de reportagens, em televisão e também pelos jornais, com gravíssimas acusações contra a Universal e seu controle sobre a Record. Imagens de bispos em festas orgiásticas em torno do dinheiro arrecadado dos fiéis foram o mínimo que o Jornal Nacional colocou no ar ao longo das semanas que se seguiram.
O Dr. Roberto Marinho não conseguiu derrubar o Bispo Edir Macedo – e esta foi uma das poucas derrotas que conheceu em quase um século de vida. Oito anos e meio depois, a Record aproveitou o pedido de empréstimo emergencial de quase 4 bilhões de reais que a Globo estava fazendo ao BNDES para produzir um editorial em que acusa a emissora da família Marinho de passar por administrações irresponsáveis ao longo de muitos anos, inflacionar os preços sobretudo de eventos esportivos, pagar salários astronômicos aos seus artistas, tirar do povo o seu direito de escolha e, agora, buscar dinheiro dos cofres públicos para saldar as dívidas acumuladas.
De quebra, fazia de palhaço o presidente da Bandeirantes, Johnny Saad, ao tratar jocosamente uma frase pinçada de um de seus depoimentos no Senado, onde afirmava que as empresas podem fazer o que quiserem com o dinheiro obtido junto ao BNDES, inclusive ‘comprar canarinhos’.
Pregadores e fiéis
Todo mundo conhece o episódio da proposta de empréstimo à midia e também a posição das emissoras (Record e SBT foram ao BNDES e também ao ministro Gushiken dizer que não queriam coisa alguma, que o dinheiro do BNDES deveria ser para novos investimentos, e a Bandeirantes acabou também se tornando contrária). Porém, a virulência do texto da Record para a massa de telespectadores no horário nobre é uma novidade. Maior novidade ainda está na pouca repercussão que encontrou. A sexta-feira (2/4), em nada refletia o tom emanado na noite anterior pela terceira maior rede de televisão do Brasil.
A Globo não respondeu. Já o BNDES, segundo o portal Comunique-se (5/4) e a Folha de S.Paulo (6/4), enviou notificação à Record solicitando direito de resposta e, segundo a assessoria do banco, vai entrar na Justiça caso o espaço não lhe seja concedido. O BNDES acusa o programa de ter deturpado os fatos, sido ‘calunioso’ e ‘ofensivo’.
No mesmo dia 5, o site do noticiário especializado Pay TV News afirmava que o custo político e o desgaste estão afastando a Globo do BNDES. A informação, obtida de ‘fontes graduadas das Organizações Globo’, dizia que ‘neste momento, tudo caminha para que a reestruturação financeira do grupo seja feita sem a ajuda do BNDES’ visto que ‘os benefícios da operação não compensam o custo político e o desgaste que uma eventual ajuda do banco estatal trariam à Globo’. Pela mesma fonte, a negociação com os credores pode estar concluída ainda em abril e incluirá ‘um novo equacionamento espacial na dívida, que seria paga integralmente, sem deságio, até 2012’.
A pouca repercussão pública de caso tão rumoroso, levado à massa de espectadores e envolvendo a emissora mais popular do país (acusada explicitamente de encorajar a miséria do povo), é o grande emblema desse fato. O passar batido, neste caso, reflete uma situação sobre a qual, no fundo, a Record está falando. Por que os programas repercutem na Globo e não repercutem nas outras emissoras?
Veja-se o fato recentíssimo da novela Metamorphoses, na própria Record. Nascida de um contrato de risco feito com a produtora Casablanca, envolveu altos custos (para a produtora) e um grande elenco, além de uma campanha publicitária. A novela mexeu com toda a grade da Record, inclusive o Jornal da Record com Boris Casoy, retardado em quase duas horas.
Não passou dos cinco pontos – e poucos espectadores, entre os aficcionados de novelas, saberão dizer o seu enredo ou o nome de três personagens. O fenômeno tem a ver bem menos com o poder econômico que com a qualidade e a abrangência do produto televisivo oferecido.
Essas questões não podem estar ausentes dos debates sobre a economia da mídia, seja lá em que nível estiverem sendo travados. Há especificidades na relação entre programação e telespectador que são diferentes das que existem, por exemplo, entre pregadores e fiéis em seitas populares. Num e noutro, o ser às vezes não é e o não ser às vezes, é. Uma Igreja montada pela Globo talvez demorasse bastante para entender o seu rebanho.