O economista Richard Nelson, professor da Universidade Columbia, em Nova York, esteve recentemente no Brasil para palestras no Instituto Fernando Henrique Cardoso e no Instituto de Estudos Avançados da USP. Também gastou seu tempo com um jornalista, observador da imprensa, no café do hotel onde estava hospedado. Nelson, um pensador maduro das coisas da economia globalizada, não quis falar especificamente sobre o Brasil, mas discorreu com entusiasmo sobre o papel das instituições no desenvolvimento econômico.
Mais à vontade diante de um suco de laranja com mamão do que diante dos acadêmicos no IFHC e no IEA-USP, Nelson deteve-se um pouco mais na análise das instituições, que é como chama os fatores que definem a produtividade econômica e sua progressividade. Provocado por este observador, concordou em refletir sobre o fenômeno da transformação dos indivíduos em instituições. De suas constatações pode-se extrair algumas lições que nos ajudam a entender certos paradoxos que parecem afetar a efetividade da imprensa.
O primeiro paradoxo é representado pelo bombardeio de informações a que o indivíduo é submetido constantemente, e sua contrapartida, as informações sobre o indivíduo que são capturadas de sua intimidade e vendidas ao mercado, para ações de marketing. Nesse jogo, o indivíduo se consolida como instituição e aparentemente adquire certa imunidade contra as ações de venda que são o objetivo desse processo. Portanto, as estratégias de venda de informação ou de outros serviços e produtos falham porque são dirigidas a um receptor estático, enquanto o próprio processo de comunicação, intenso, o transforma em receptor dinâmico, institucionalizado.
O segundo paradoxo é que, transformado em instituição, o indivíduo adquire um poder de repercussão e multiplicação muito maior do que se imagina nos núcleos de ‘inteligência’ das empresas de comunicação, o que reduz o controle sobre as influências a que se tenta submetê-lo.
Um exemplo claro é a estratégia de divulgação do show da banda irlandesa U2: com a doce cumplicidade do jornalismo dito cultural (na verdade, trata-se de serviço de divulgação de entretenimento, fantasiado de jornalismo e movido a jabaculês), criou-se o que no jargão dos marqueteiros é chamado de hype. Resultado: muitos milhares de jovens submetidos a constrangimento em filas à porta dos supermercados Pão de Açúcar, fiasco total no sistema de venda de ingressos, risco de centenas de processos judiciais, queima da imagem do supermercado e completa confusão entre os organizadores do evento.
Outro exemplo é o noticiário político predominantemente dirigido, nos últimos meses, para favorecer a oposição e colocar em situação de desvantagem o atual presidente da República. O hype quase histérico parece ter passado do ponto, gerando um movimento, ainda sutil, de recuperação da popularidade por parte do presidente. Em escala menor, o fenômeno se repete no nível estadual, com a constatação de que o longo período de notícias com pouco senso crítico em favor do governador paulista Geraldo Alckmin acaba por desequilibrar a disputa interna com o prefeito da capital, José Serra, pela candidatura do PSDB à presidência da República, causando um desconforto difícil de administrar.
Sentido da pergunta
O terceiro paradoxo é representado pela rápida depreciação do poder de influência da mídia, que sempre resulta de uma equação que inclui a credibilidade e a capacidade de cobrir grandes áreas do público. A transformação do indivíduo em instituição, neste caso, se revela na sua capacidade de incorporar e expropriar a credibilidade da sua fonte de informação. Assim, o leitor do jornal que repete, no boteco ou em seu grupo de interlocutores pela internet, as notícias que lê em seu diário, acaba por se transformar, ele mesmo, em mídia. A diversidade que se produz a partir do indivíduo-mídia acaba por se confrontar com o viés estático da fonte original, que perde poder de influência e credibilidade.
Essas divagações, extrapoladas de uma conversa interessante com Richard Nelson, merecem melhores reflexões do que é capaz de produzir este observador curioso, mas permitem a ousadia da afirmação: a imprensa, estática e presa a compromissos econômicos e políticos cada vez mais evidentes, perde espaço para a massa ainda inidentificável de indivíduos que atuam como instituições, girando dinamicamente no ambiente difuso e mutante da sociedade hipermediada.
Daí o sentido inteiro da pergunta: com a credibilidade em queda, incapaz de oferecer ou ao menos mediar respostas satisfatórias às angústias de seus contemporâneos, presa a um sistema de poder que se recusa a democratizar-se, a imprensa ainda pode ser chamada de quarto poder?
Por quanto tempo?
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Jornalista