Há dez anos começava uma nova era para o jornalismo com o surgimento dos primeiros veículos de informação online. A web não significou o fim do jornal impresso, mas a informação online gratuita levou os jornais e revistas impressos a descobrirem que a internet não é apenas uma maneira de divulgar o jornal, mas uma mídia específica. Une presse sans Gutenberg, de Jean-François Fogel e Bruno Patiño, lançado no fim do ano passado em Paris, constata que a mídia impressa necessita de uma refundação para responder ao desafio da era da internet, responsável por um jornalismo descentralizado, interativo, aberto e inovador.
‘Internet é a mídia onipresente, imaterial. Sua audiência, em vias de rápido crescimento, atinge a dimensão da Terra inteira, mas as massas são disseminadas. Ela é uma mídia sem massa, instantânea, a rede onde cada um se locomove rápido demais, para ser testemunha, ainda que furtiva, de sua própria solidão.’
No final da leitura, a última frase do livro ressoa juntamente com a tese principal:
‘Internet não é um suporte a mais, é o fim do jornalismo tal qual foi feito até hoje.’
Bruno Patiño, de 40 anos, diretor da revista Télérama, do grupo Le Monde, presidente do Monde interactif, o site do Le Monde, é contundente: ‘A imprensa escrita deve se reinventar, econômica e jornalisticamente, e, dessa forma, alguns títulos têm muito tempo pela frente. Mas o jornal é cada vez menos a mídia automática de antes. E a característica de ‘vício diário’ de um jornal impresso, isso está ameaçado’.
[Monde intéractif é gratuito em todos os segmentos para o jornal do dia. Para ter direito a ler edições anteriores ou artigos já publicados do Le Monde, o leitor deve se tornar assinante do site por 6 euros mensais – e terá direito a serviços exclusivos do Le Monde desk, como imagens, som e vídeo, informação atualizada todo o tempo e flashes de informação por e-mail. O assinante tem direito aos arquivos do Le Monde de qualquer data, até 25 artigos por mês.]
Bruno Patiño conversou com o Observatório da Imprensa na quarta-feira (25/1), na redação de Télérama, em Paris. Sua entrevista:
***
No Brasil, vários jornais e revistas online não têm versão em papel, como Montbläat, NoMinimo, Trópico e o Observatório da Imprensa, que manteve uma versão mensal impressa entre agosto de 1997 e março de 2000. Na França, ainda não se entendeu a especificidade dessa mídia?
Bruno Patiño – Há duas respostas: a primeira é que a mídia tradicional está descobrindo há seis ou oito meses que a internet não é apenas um meio de divulgação, mas é uma mídia específica. Isso é uma novidade, mas Jean-François Fogel e eu dizemos há algum tempo, escrevemos isso neste livro, mas só agora isso pode ser entendido pela mídia tradicional na França. Acho que antes era um discurso inaudível, mesmo se nós no Le Monde já tratássemos a internet como uma nova mídia. Por que essa realidade? Primeiramente, porque a mídia tradicional ficou escaldada pela explosão da bolha financeira [da internet]. Depois, acho que, na França, a demora em compreender que se trata de uma nova mídia deve-se ao fato de que não existe nenhum órgão especificamente feito para a internet, como no Brasil. Nenhum órgão de informação puramente web se impôs na França.
Mas os franceses tentaram fazer jornais e revistas na internet…
B.P. – Tentaram nos anos dourados de 1998 e 1999 e as tentativas foram por água abaixo, com a explosão da bolha financeira. Então, de uma maneira ou de outra, a mídia tradicional não se sentiu ameaçada por esses novos atores que chegam e dizem: ‘Vamos conquistar esses novos territórios à nossa moda’. Acho que o início da tomada de posição começa quando os mastodontes como Google e Yahoo! começam a fazer sites de informação. Quando Google News chegou à França, em 2004, e começou a se impor, a mídia tradicional pensou que não estava mais sozinha. Até então havia uma ilusão, eles pensavam: ‘Sou uma mídia tradicional, posso decidir o que fazer na internet, não estou ameaçado. Fico com meus concorrentes habituais: se me chamo Le Monde, olho o que fazem Le Figaro, Le Nouvel Observateur, TF1 e fica tudo entre nós’. E, de repente, chegam os outros. Hoje, início de 2006, várias pessoas se preparam para lançar órgãos de informação especificamente online, sem versão papel. É a terceira onda de concorrência que chega.
O senhor diz que o jornalismo online inicia uma nova História e não um capítulo da história do jornalismo. Os patrões da imprensa já estão convencidos disso?
B.P. – Eles começam a se convencer. Vê-se pela acolhida do livro. Há um ano ele não teria tido a mesma acolhida por parte dos donos da mídia. Eles já constataram que o monopólio dos jornalistas sobre a informação está arranhado. Com os blogs, os algoritmos, as reações, os jornalistas mantêm a profissão, transmitem informação, destacam, hierarquizam a notícia, mas não são mais os únicos a fazê-lo. E é este o capítulo novo, um pouco como os médicos: na França, ainda, os únicos que podem exercer a medicina são os médicos.
E os jornalistas estão ameaçados?
B.P. – Eles não estão ameaçados, mas não são mais os únicos a lidar com a informação; ao contrário, devem reafirmar todos os dias a especificidade do know-how deles. Não se pode mais dizer: ‘Sou jornalista, somente minha profissão é levada em conta quando transmite informação’. Hoje, se sou jornalista, sei que concorro com blogs pessoais, com os motores de busca, os algoritmos etc. E penso que os patrões da mídia começam a entender isso. E que de certa forma, com o enxugamento das redações nesses últimos anos, por causas econômicas, a gente tem cada vez menos jornalistas nas redações. Hoje, acho que da parte dos patrões começa a haver uma reflexão sobre a qualidade de seus jornalistas e não somente sobre a quantidade. Hoje, ter jornalistas capazes de fazer a diferença tornou-se algo importante.
Qual a principal diferença entre o site do Le Monde e dos outros grandes jornais franceses ou estrangeiros?
B.P. – Acho que estamos na frente – mesmo que eles tentem nos alcançar – na concepção de que a internet não é apenas uma maneira de divulgar o jornal, é uma mídia específica inclusive na diagramação das páginas, ou melhor, na ergonomia na tela, com essa coluna de terço em terço que escapa aos cânones da imprensa. Imagine que, hoje, 80% das páginas lidas no site do Le Monde não vêm do jornal. Acho que não é esse o caso dos nossos concorrentes.
Le Monde está muito à frente dos concorrentes em relação à internet?
B.P. – Na França, sim. Quando olho os sites estrangeiros, não posso falar dos brasileiros, porque não falo português – desculpe não citá-los, falo dos sites que posso ler porque conheço a língua. Se nos comparo ao Clarín, na Argentina, para mim um dos mais belos sites em espanhol que existem, se me comparo ao Der Spiegel, na Alemanha, ao New York Times ou ao MSNBC, nos Estados Unidos, acho que estamos no mesmo nível. Quanto ao site do El País, acho que eles têm outros parâmetros de gestão de especificidades web. Por outro lado, na navegação, acho que eles inventaram um esquema muito interessante mas é preciso ir mais longe. Esta navegação não é piramidal, mas em forma de um cubo no qual pode-se entrar por uma das seis faces. Acho bastante interessante. Acho que o Le Monde está na vanguarda na França e faz parte dos 15 melhores sites mundiais.
Os jornalistas do Libération protestaram no fim do ano passado contra a determinação de trabalharem para o jornal impresso e para a versão online. O jornalista do futuro é necessariamente multimídia?
B.P. – Acho que não. Ele conhece este universo e o domina, mas o que quer dizer hoje um jornalista de imprensa escrita? Você sabe que entre o encarregado de acompanhar os fatos no seu jornal, ou o especialista de perfis, ou o grande repórter, já temos três pessoas que têm savoir faire diferente. Imaginar que possa existir jornalistas multifunções como os instrumentos de hoje, imaginar essa automatização das funções do jornalista dizendo ‘faço rádio, vídeo e web’, eu não apostaria nisso. Não acredito nessa concepção taylorista do jornalismo do futuro. Por outro lado, acho que os jornalistas se especializarão na relação com o tempo ou seu modo de funcionamento. Que se surjam nas redações os desks de notícias contínuas, que devem ao mesmo tempo gerenciar o impresso, o telefone celular ou a internet, eu entendo. Mas, por outro lado, um especialista em perfis é sempre um especialista em perfis, um repórter de jornalismo investigativo será sempre um repórter de jornalismo investigativo. Ou mesmo no web, alguém que faz portfolios será alguém que saberá melhor fazer isso.
O futuro do jornalismo na internet imporá uma leitura exclusiva para assinantes ou evoluirá para a abertura total e a gratuidade?
B.P. – Não sei. Todos os modelos econômicos existem na internet, mas ninguém pode impor um mecanismo de mercado. Lembro que em 2000 havia essa visão ingênua de alguns diretores de redação que me diziam: ‘Se o Le Monde, Libération e Le Figaro estiverem de acordo para cobrar a informação na internet, então ela será paga’. Hoje, com Google News, Yahoo! News e os algoritmos, vê-se como essa proposta parece quase infantil. O que eu acho é que a informação factual e imediata na internet repousa num modelo de gratuidade que me parece insuperável, porque ela custa barato para produzir, não custa nada para ser reproduzida e não custa nada para ser transmitida. E de uma maneira ou de outra, transmitir o resultado de um jogo de futebol ou uma informação factual como hoje é feita, não vejo por que ela se tornaria um dia paga. Por outro lado, se se criam mercados, nichos ou mercados minoritários de coisas que seriam consideradas não-substituíveis, isso é possível. Mas aí se entramos no domínio de um serviço em torno da informação: mecanismos de alerta, informação personalizada ou da hiper-especialização da informação. Penso que a informação geral, factual na internet será gratuita por muito tempo.
Os catastrofistas prevêem o desaparecimento dos jornais, ao menos da imprensa paga, para 2014, 2018 ou 2040, de acordo com o seu livro. Na sua opinião, os jornais impressos têm os dias contados?
B.P. – Eu também dirijo uma revista impressa, e se eu estivesse certo que [esta mídia] iria acabar não faria isso como trabalho. Penso que, evidentemente, estamos numa crise de transição grave para os jornais impressos. Que é mais forte, paradoxalmente, do que a crise que eles viveram na chegada da televisão. Na chegada da televisão na França, o que aconteceu com a imprensa escrita? Uma certa informação foi dada pela televisão enquanto antes era dada pela imprensa escrita. E houve jornais que desapareceram. Paris Soir , por exemplo, morreu. Outros começaram a longa descida aos infernos, como France Soir, que vendia 1 milhão de exemplares, e outros tiveram a importância diminuída, como Paris Match. Se examinarmos os Estados Unidos, o declínio da Life é totalmente ligado à televisão. Constato que este impacto de crise de civilização, de crise de certos princípios, de certo tipo de imprensa escrita depois da chegada da internet, é importante neste momento. Logo haverá mortos, haverá títulos que vão entrar em declínio, outros vão se sentir ameaçados. Mas, de outra parte, o que constato é que a chegada da televisão permitiu à imprensa escrita se regenerar, e a certos gêneros jornalísticos do impresso voltarem. A análise da notícia, criada no New York Times na época, foi uma reação à TV. Antes, não se fazia isso na imprensa escrita. Hoje, a análise é a quintessência da imprensa escrita de qualidade. Portanto, de certa forma, a TV paradoxalmente permite o crescimento de títulos de imprensa de qualidade, fundados na análise e na investigação, como o The New York Times, The New York Post e Le Monde, na França.
Acho que a imprensa escrita como meio de massa não tem muito futuro. A imprensa escrita deve se reinventar, econômica e jornalisticamente, e, dessa forma, alguns títulos têm muito tempo pela frente. Mas o jornal é cada vez menos a mídia automática de antes. E a característica de ‘vício diário’ de um jornal impresso, isso está ameaçado. Veja o que se passa em Londres, a bela história do The Guardian. O Guardian nunca foi tão poderoso na versão impressa quanto agora, mas também é o site de referência da informação em língua inglesa na Inglaterra. O melhor site é o Guardian, o melhor jornal para mim é o Guardian e os dois progridem de forma separada. E se você tomar a informação de maneira mais global, constata que a imprensa de qualidade na Inglaterra está em melhor situação do que a imprensa de grande circulação popular.
Acho que a história não está escrita. O que está acontecendo com os jornais impressos é uma necessidade absoluta de redefinição jornalística e econômica, mas há ainda muitas coisas a fazer. Não acredito nem um pouco nas previsões catastróficas.
O senhor foi correspondente do Le Monde no Chile e é autor de Pinochet s’en va. Como vê a eleição de Michelle Bachelet ?
B.P. – Tenho uma visão paradoxal das coisas. Não creio que seja uma ruptura. Na França, apresentam essa eleição como uma coisa importante, talvez porque seja uma mulher, talvez por sua história pessoal. Mas quando você olha bem a história do Chile, há três momentos de ruptura. Há evidentemente a perda do plebiscito por Pinochet, em 1989, que leva à eleição de Patrice Alwyn, em 1990, e começa a transição co-gerada entre militares e civis. A segunda data importante é, evidentemente, a prisão do general Pinochet, que começa a provocar uma cisão entre a direita clássica e o pinochetismo. E o terceiro momento de ruptura importante para mim é o que termina agora, do qual ninguém fala. O mandato de Ricardo Lagos foi fantástico. Por quê? Porque foi a demonstração de que a Concertación Democrática [aliança de democratas-cristãos, socialistas e outras forças políticas que, a partir de janeiro de 1988, formaram uma alternativa democrática à ditadura] poderia sobreviver à eleição de um socialista. No início não era certo. No início, em 1990, quando Patricio Aylwin foi eleito, havia pessoas dentro da Concertación que diziam que não daria certo – só daria se fosse um democrata-cristão. A primeira conquista de Ricardo Lagos foi a demonstração de que um socialista poderia ser eleito e que não haveria problema, que a Concertación resistiria. Que mesmo os democratas-cristãos, que pareciam ter a impressão que o poder lhes pertencia, poderiam aceitar que um socialista chegasse ao poder.
Havia um sufoco por causa dos escândalos pinochetistas, do trabalho dos juízes. Viu-se surgir uma verdadeira direita não-pinochetista. Sebastián Pinera, o candidato da direita, nunca foi pinochetista, ele fez campanha pelo ‘Não’ no referendo, junto com as forças democráticas. E o fato que ele teve uma vitória formidável sobre Joaquin Lavín, da direita pinochetista, mostra que a dirieita chilena mudou, que ela é ultraliberal, business, mas agora muito distante das origens pinochetistas.
A terceira grande coisa foram as reformas constitucionais que aconteceram no ano passado. Fui correspondente num momento em que Aylwin tentava mudar, ano após ano, a Constituição de 1980, elaborada sob Pinochet e que previa um certo número de enclaves autoritários. E o que um democrata cristão não conseguiu fazer, um socialista fez. E hoje temos uma democracia chilena ou um regime constitucional chileno que se democratizou consideravelmente. Acho que a verdadeira ruptura é Ricardo Lagos, que transformou o Chile num estado plenamente democrático, e que Michelle Bachelet é a conseqüência do mandato de Lagos, um mandato de grandes realizações. Ele deixa o poder com 70% de popularidade. Bachelet tem um percurso pessoal formidável, teve um papel nesse mandato de Lagos, é filha de um general torturado. O fato que Pinochet tenha sido preso em Londres ajudou consideravelmente a democracia chilena a tornar-se o que ela é hoje, a fazer esse percurso formidável.