O processo de venda do grupo Knight Ridder, sob condições absolutamente adversas e num momento crucial em que muitos analistas discutem o destino da imprensa no universo dos negócios de comunicação, deveria estar produzindo a convergência de todos os interessados no futuro do jornalismo. Mas seguimos ignorando o panorama geral, fragmentando os debates e passando ao largo do que interessa: preservar a instituição da imprensa, redefinir seu papel social e encontrar modelos de negócio que lhe assegurem integridade e independência.
A imprensa brasileira não se discute a sério. Com os mesmos vícios que tornam enviesada sua interpretação da realidade, prende-se demais aos interesses de negócio e às alianças políticas com que sempre contou para preservar vantagens e manter sob certa influência as instituições do Estado e as sociais.
Afinal, já não se faz jornalismo para a opinião pública, mas para as instituições. E, como já se disse aqui em outras ocasiões, o conceito moderno de instituição extrapola o aspecto formal das organizações, de modo que se pode concentrar a expressão de interesses poderosos em grupos relativamente pequenos de indivíduos. Um exemplo disso é o ambiente de negócios, no qual uma mensagem cuidadosamente dirigida a um núcleo de formadores de opinião pode produzir ondas no mercado, afetar a imagem de uma empresa ou alterar as chances de aprovação de determinada política pública. Hoje, o lobby atua diretamente nas cúpulas das redações, a partir de alianças explícitas ou implícitas.
Faltam estratégias
A imprensa tem seus aliados preferenciais, como sempre, mas se tornou mais reacionária com a crise, o que produz claramente maior tolerância com relação a divergências menores dentro do espectro ideológico em que seus dirigentes se sentem mais confortáveis. Assim, por exemplo, podemos observar a prática de um jornalismo que faz claras distinções entre corruptos e corruptos, entre contrabandistas e contrabandistas, entre sonegadores e sonegadores. Entre prostitutas, quando perdedoras, e ‘garotas de programa’, quando se tornam celebridades.
No afã de preservar o negócio de comunicação em si, o que resulta dessa atitude é uma ameaça crescente sobre a natureza do negócio e sua essência. Para fazer sentido, a imprensa precisa sempre ser vinculada a um valor social. Na longa crise de modelo – que começou atacando as empresas e progressivamente contamina o jornalismo – corremos o risco de que a opinião pública também perca a noção do papel social da imprensa.
O que está realmente em crise? Com certeza, a capacidade gerencial das empresas de comunicação, sua disposição para a reinvenção, o gosto pelo risco. O temor de se desprender de um modelo protegido por leis discutíveis e a falta de estratégias de longo prazo são claramente fatores que agravam a crise.
Fio condutor
Por trás de tudo, parece que estamos vivendo um período de carência extrema de líderes. Mesmo discutíveis em seus métodos e em seu conservadorismo, havia estadistas na imprensa há 20 ou 10 anos. Júlio de Mesquita Neto, Roberto Marinho e Victor Civita eram cidadãos em sua plenitude. Difícil concordar com suas escolhas políticas, nascidas e consolidadas em um tempo de maniqueísmo e bipolaridade. Mas todos eles sabiam, em grande medida, conviver com as divergências. Todos os três tiveram sob suas ordens, às vezes em cargos de irrestrita confiança, profissionais forrados de convicções políticas extremamente opostas às suas.
Situação praticamente impensável nos dias de hoje. Então, se não consegue mais conciliar as grandes ordens de pensamento, as empresas de comunicação dificilmente se mostrariam capazes de colocar sobre a mesa as cartas do que realmente está em jogo.
A crise conduz ao debate sobre a propriedade dos meios de comunicação, sobre mudanças na lei que permitiriam o ingresso de novos empreendedores, sobre o estímulo à formação de cooperativas de editores, e por aí vai.
Só que não vai, porque a imprensa não quer um debate nesses ternos.
******
Jornalista